Piauí Pretassa

Esperança Garcia, pela liberdade

Mulher negra escravizada é autora da carta que denuncia as violências sofridas e tornou-se símbolo de resistência

Esperança Garcia (1751-?) é lembrada pelo movimento negro do Piauí como símbolo de resistência e luta por direitos. Mulher negra escravizada, viveu em uma época em que homens e mulheres negros eram mantidos em condições desumanas, sofrendo agressões, torturas e sendo tratados como propriedades dos senhores de negros escravizados.

Nascida na Fazenda Algodões, no que hoje está localizado o município de Nazaré do Piauí, a 276 quilômetros da capital Teresina, acredita-se que aprendeu a ler e escrever com os jesuítas. Isso em um contexto no qual o domínio e a compreensão do português eram restritos à elite, mais especificamente, à população masculina.

Após a expulsão da Companhia de Jesus por Marquês de Pombal (1699-1782), as fazendas se tornaram propriedades nacionais, sob domínio da Coroa Portuguesa e foram divididas em três inspeções. Esperança é transferida de Algodões e passa a trabalhar na cozinha da casa do inspetor responsável pela inspeção Nazaré, sendo separada do seu marido e de parte dos seus filhos.

Sofrendo violência escancaradas e presenciando seu filho mais novo sendo torturado, escreve uma carta endereçada ao Governador da Capitania do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, entre os anos de 1769 e 1775. Numa sociedade escravocrata, Esperança Garcia utiliza-se da linguagem do colonizador para denunciar a situação em que vivia e reivindicar os seus direitos.

A carta feita de próprio punho e redigida em primeira pessoa, retrata a realidade de uma mulher negra escravizada durante o período do Brasil Colonial (1500-1815). Descreve a crueldade que seu filho sofria, recebendo “grandes trovoadas de pancadas” que lhe fazia “extrair sangue pela boca” e denuncia a forma em que ela era violentada, comparando-se a um “colchão de pancadas”. Além de reivindicar o batismo dos seus filhos e dos filhos de outras companheiras, direito que seria concedido às pessoas escravizadas.

O ato de coragem de Esperança Garcia foi feito supostamente quando ela teria 19 anos. Datada de seis de setembro de 1770, o documento segue o modelo de petição utilizado na segunda metade do século XVIII e é um registro raro de petição escrita por uma mulher negra. A carta foi identificada em 1979, no Arquivo Público do Piauí pelo pesquisador e historiador, Luiz Mott. Segundo Mott, trata-se do documento mais antigo de reivindicação de uma escravizada a uma autoridade e tornou-se um documento de preservação da memória afro-brasileira. Em sua homenagem, a data foi oficializada como o Dia Estadual da Consciência Negra no Piauí, em 1999. E em 2017, após 247 anos da escrita da carta, Esperança recebe o título de primeira mulher advogada no Piauí, um pedido da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra do Piauí da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PI).

A escrita e o teor da carta, aliado ao envio para o Governador, mostra que apesar da condição de escravizada, Esperança Garcia era uma mulher consciente das torturas vividas e do seu direito em reivindicar uma vida livre e que lhe levasse de volta a sua família. Sua história inspirou movimentos sociais e movimentos negros ao longo dos anos em solo piauiense e resultou em uma série de outras homenagens. Praças e auditórios em universidades e memorial da cultura negra levam seu nome. Em 2019, seu nome também foi incluído no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.

Em homenagem a Esperança Garcia, foi criado recentemente o Instituto que leva seu nome, que pretende promover ações que tenham a educação como ferramenta de transformação social. No site do projeto, sua coordenadora, Andreia Marreiros, associa a importância da carta à luta contra o racismo e por igualdade de gênero, raça e classe no Brasil. Ela afirma que a voz da Esperança é “peça fundamental para compor as memórias de luta e resistência do povo negro e construir as caixas amplificadoras de vozes historicamente silenciadas por uma colonialidade que nos rouba o direito de ser quem somos. É esperança para invenção do mundo onde possamos ser quem queremos ser”.

O grito de Esperança Garcia é um marco contra as opressões diárias sofridas dentro de uma sociedade racista e sexista, que ainda carrega muitas das violências e torturas sofridas pelo povo negro no período colonial. Sua história e sua coragem servem de inspiração para a população negra brasileira que segue reivindicando direitos e lutando por uma sociedade mais justa e igualitária.

 A carta:

“Eu sou hua escrava de V. Sa. administração de Capam. Antº Vieira de Couto, cazada. Desde que o Capam. lá foi adeministrar, q. me tirou da fazenda dos algodois, aonde vevia com meu marido, para ser cozinheira de sua caza, onde nella passo mto mal. A primeira hé q. ha grandes trovoadas de pancadas em hum filho nem sendo uhã criança q. lhe fez estrair sangue pella boca, em mim não poço esplicar q. sou hu colcham de pancadas, tanto q. cahy huã vez do sobrado abaccho peiada, por mezericordia de Ds. esCapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confeçar a tres annos. E huã criança minha e duas mais por batizar. Pello q. Peço a V.S. pello amor de Ds. e do seu Valimto. ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar a Procurador que mande p. a fazda. aonde elle me tirou pa eu viver com meu marido e batizar minha filha q.

De V.Sa. sua escrava Esperança Garcia”

Tradução

“Eu sou uma escrava de V.S.a administração de Capitão Antônio Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da Fazenda dos Algodões, aonde vivia com meu marido, para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho nem, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca; em mim não poço explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar a três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a V.S. pelo amor de Deus e do seu valimento, ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que mande para a fazenda aonde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.

 De V.Sa. sua escrava, Esperança Garcia”

Compartilhe: