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Falo de memória viva em nós: pretas e pretos em movimento

Uma pequena introdução: dêem nome ao que tenta apagar os pretos

 “Primeiro ‘cê sequestra eles, rouba eles, mente sobre eles
Nega o Deus deles, ofende, separa eles
Se algum sonho ousa correr, ‘cê para ele
E manda eles debater com a bala que vara eles, mano”.
Emicida.

Desde o período colonial, África foi continente alvo de diversas ações de deslegitimação, extermínio físico e simbólico, passando pelo extrativismo geográfico, cultural e epistêmico. São ações que podem ser entendidas como parte de Projetos coloniais ainda vigentes, que se estenderam por toda afrodiáspora. Assim, mesmo diante de toda multiculturalidade entre as populações negras, este Projeto cria e ainda mantém um problema em comum entre essas populações, que é o problema racial.

Isso é facilmente evidenciado ao observarmos que os grupos em que pessoas negras estão inseridas são os mais vulneráveis às diversas violações. Mulheres, pessoas LGBTQs, homens, adolescentes, pessoas idosas, se tratando de pessoas pretas, serão em sua maioria alvo de qualquer violência física ou simbólica. Uma delas é o que se pode chamar de epistemicídio, visto neste texto pela perspectiva de Sueli Carneiro (2005). Essa ação tem buscado no decorrer dos séculos a desqualificação de determinados grupos como produtores de conhecimentos, como as populações africanas e da diáspora. Seja na produção do conhecimento científico, filosófico, artístico, religioso, qualquer prática que não possua o pensamento eurocêntrico como foco, para o epistemicídio, passa assim, a ser tomado como ilegítimo. É o não reconhecimento das pessoas pretas como produtoras de conhecimentos, não somente na escrita, mas na oralidade, nas expressões corporais, no cântico, na alimentação, nas formas de ser e estar no mundo. 

A movimentação preta existe

“Alforriaram o nosso corpo, mas deixaram as mentes na prisão
Não! Abre logo a porra do cofre
Não tô falando de dinheiro, eu falo de conhecimento
Eu não quero mais estudar na sua escola
Que não conta a minha história, na verdade me mata por dentro”.
 Thiago Elniño.

Falar de epistemicídio é falar sobre racismo institucional, que é a manutenção e reafirmação do racismo por meio das instituições. Isso reflete nas histórias incompletas sobre a população afro-brasileira que nos apresentam na escola, nas ausências negras nos currículos das universidades, nos estereótipos racistas reforçados pela mídia, no dia-a-dia de uma pessoa negra. Reflete no genocídio que extermina fisicamente esses corpos, também os retira a legitimidade da voz, da presença, da liberdade, do direito de se inserir em diversos espaços sociais, buscando os limitar aos lugares de invisibilidade. E tratando especificamente da produção dos conhecimentos pretos por meio da escrita em espaços institucionais como a universidade, local que se constrói de modo histórico tendo o eurocentrismo como referência, não há possibilidade de reconhecimento dessas produções em sua totalidade. Ou seja, há uma disputa de poder por parte dos saberes tidos ainda hoje como hegemônicos para manter uma posição de dominação sobre o que é considerado como outro.   

Ainda assim, essas tentativas de apagamento não foram suficientes para impedir a produção, criação, movimentação social, cultural e política das pessoas pretas no Brasil. As resistências históricas, a literatura de contestação de Maria Firmino dos Reis (1822-1917), Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e Conceição Evaristo, O Teatro Experimental do Negro (TEN) de Abdias Nascimento (1914-2011), pautando o reconhecimento social do negro por meio da educação e da arte, os estudos de resgate e ressignificação da história do negro de Beatriz Nascimento (1942-1995), os estudos pioneiros sobre questões raciais de Virgínia Bicudo (1910-2003), dentre várias outras referências não apresentadas como fundamentais nas instituições de ensino.

Mesmo diante das tentativas de invisibilização, demonstram a vivacidade e potência das pessoas pretas, inclusive, para falar por elas mesmas. A movimentação preta existe. Entendendo essa realidade, há o questionamento diário de onde estão, por exemplo, essas produções de décadas e séculos passados, quem são as/os produtoras/es pretas/os de conhecimentos e, até mesmo, imaginar a quantidade de pessoas negras que se expressaram de diversas formas e não tiveram visibilidade, não chegaram até nós. Ao nos inserirmos em espaços institucionais historicamente embranquecidos, no momento que tomamos consciência de que o fato de pessoas como nós não serem reconhecidas como produtoras de conhecimentos são mecanismos do racismo, a busca revoltosa e incansável por nossas próprias referências se torna inevitável.

Memória viva em nós

“Junte nossos recursos, junte nosso talento e façamos algo por nós mesmos”.
Malcolm X (1925-1965).

Evidente que os resgates cotidianos daquilo que nos pertence, que passa por tentativas históricas de apagamento pode não ser fácil. Requer recursos, requer tempo, requer coragem e também consciência de que os de hoje são responsáveis pela memória ancestral. É continuidade. E quem fará por nós? Considerando que ao mesmo tempo que a população afro-brasileira constitui maior presença no país, também é a mais vulnerável em diversos aspectos devido racismo estrutural e precisa se manter viva em questões mais básicas do cotidiano, como por exemplo, a simples ação de se locomover de um lugar para o outro, quem fará?

A realidade é que de modo histórico, as lutas travadas e conquistas obtidas para as pessoas negras foram e são concebidas por elas mesmas. Já é um motivo para cada pessoa preta se pensar como agente da questão toda. Clóvis Moura (1987) já apontou em seus escritos de que no Brasil, desde o período escravista, havia a união entre negros escravizados e indígenas contra o Sistema Escravocrata (1530-1888), organizavam o que era tido como desordem e formações de quilombos. Outra realidade é a de que, em meio a tantos processos de invisibilidade, retomar quilombos como forma de construção coletiva entre pretas/os, parece ser um dos únicos caminhos possíveis de sobrevivência e vivência. Não é um processo fácil, mas um processo necessário. Como para Fanon (1997), a descolonização sempre será um fenômeno violento, assim como uma desordem absoluta.

Referências 

CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2005.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
MOURA, Clóvis. Quilombos: Resistência ao escravismo. São Paulo: Editora Ática, 1987.
NASCIMENTO, Abdias do. O Genocídio do Negro Brasileiro – Processo de um Racismo Mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
NASCIMENTO, Maria Beatriz. O conceito de Quilombo e a Resistência Cultural Negra. In: RATTS, Alex. Eu Sou Atlântica – sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial (SP) e Instituto Kuanza, 2006. 

Foto de capa: Pexels.

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