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“Em razão de sua raça” – homens negros e antecipação da culpa

Recentemente, o Brasil “se horrorizou” diante de uma sentença assinada por uma juíza paranaense. Na sentença ela afirmava que o réu, um homem negro, seguramente faria parte de grupo criminoso “em razão de sua raça”, ainda que nada ou muito pouco se soubesse sobre a sua conduta social. O que há de incomum aí não é a convicção relativa à culpabilidade deste homem negro, mas apenas a verbalização explícita do racismo. O olhar que essa juíza mobilizou em relação ao réu, penso eu, atravessa até mesmo as nossas relações mais comuns.

É frequente que comentários e análises envolvendo essa temática fiquem circunscritos à observação da manifestação do racismo dentro do Poder Judiciário ou das forças policiais do Estado. É mais ou menos por aí que caminham muitos dos debates sobre encarceramento em massa e sobre a função exercida pelas polícias, de manutenção da dominação de classe, associada à história da sua criação para controlar populações dos negros recém-libertos no pós-abolição. Fora desse ambiente, o mais comum é que se discuta o papel dos meios burgueses de comunicação, por meio dos programas policialescos, na criação e reprodução de estereótipos que associam pessoas negras (em especial, os homens negros) às ideias de perigo, agressividade, marginalidade e criminalidade.

Esses são debates importantíssimos, sobre os quais há textos e materiais em abundância na internet. Contudo, o convite que faço é para que pensemos sobre como essa lógica aparece fora desses espaços normalmente observados. Como essa lógica de presunção da culpabilidade de pessoas negras atravessa as nossas relações, mesmo no nível mais íntimo? Como isso atravessa até mesmo a relação que temos com nós mesmos? 

Creio que a concepção de Racismo Estrutural, elaborada e difundida por meio do professor Silvio Luiz de Almeida, pode ser um caminho para pensar essas questões. A ideia comunicada pelo professor é a de que o racismo é um elemento fundamental na história do Ocidente; o racismo estrutura não apenas a sociedade em suas instituições, mas atravessa e constitui TODAS as relações humanas no mundo.

Partindo daí, articular essa noção com o que Achille Mbembe nos diz em “Crítica da Razão Negra” (2014) me parece importante. Mbembe argumenta que no processo mesmo de consolidação do Ocidente a partir da lógica eurocentrada, Negro e raça passaram a significar a mesma coisa. Nesse movimento, Mbembe continua, o Negro é aquele que a gente vê quando não vê nada, quando não entendemos e não queremos entender nada.

O Negro, para Mbembe, é frequentemente associado a paixões exageradas, a emoções cuja exuberância nos aproxima da irracionalidade e nos distancia da razão (ou da civilidade) ocidental. O Negro, portanto, é aquele que representa perigo justamente porque não é identificado como civilizado. O Negro é o louco, irracional, aquele que precisa ser controlado, vigiado e publicamente punido na tentativa de “domesticação” deste ser animalizado.

Essa ideia de animalização do corpo negro costuma ser muito acionada quando se discute a hipersexualização dos nossos corpos, mas também é mobilizada na construção desse imaginário que coloca pessoas negras como perigosas, agressivas ou de caráter naturalmente questionável. Dentro desse escopo, é comum que nas mais diversas situações se entenda e se aceite, sem qualquer questionamento, a total condenação de pessoas negras, como as únicas culpadas por tudo, mesmo que só tenhamos ciência de uma fração da história.

É muito sintomático que seja recorrente, na produção artística de homens negros, trechos sobre como nós representamos o perigo e incorporamos sozinhos o erro. Baco Exu do Blues canta, em Esú: “sinto que o mundo tem medo de mim”, e em Abre Caminho: “a justiça é cega, vê tudo negro”; Rashid, em Estereótipo, diz: “se chama inversão de valores, ou show de horrores / quando a definição de suspeito vem com uma tabela de cores”; MV Bill, em Soldado Morto: “eu só queria viver, eu só queria sonhar / condicionado a trair e a decepcionar” e, mais na frente: “muito mau, marginal, coisa e tal, problema social… / pra destruição o cenário perfeito”; Gilberto Gil, em Drão, canta: “os pecados são todos meus”. Os exemplos são infinitos.

Michael Rizzi, rapper, poeta e MC de Fortaleza (CE), que também contribui para o Negrê, tem uma poesia inteira sobre ser percebido a partir desse olhar de perigo. Um dos vários trechos que merece destaque diz que: “me conceituam de formas mais “criativamente” / Mas é engraçado que pra essas pessoas eu só não sou GENTE”; e, mais na frente, continua dizendo: “foi no Facebook e postou #TamoJuntoMaju / Mas quando vocês vê os preto na rua, vocês julgam de um por um / Coisa incrível, mas normal / Já percebeu que pra polícia preto sempre vai ser o suspeito principal?

Sendo o racismo um elemento que constitui a norma de como nos relacionamos e pensamos as nossas relações, penso sobre em que medida isso também não se manifesta na forma como olhamos para nós mesmos.

Algo muito comum na construção da minha subjetividade fala sobre eu me colocar em um lugar de culpabilização e preferir ser visto como o único culpado por tudo ao invés de tentar me defender e oferecer a minha própria perspectiva sobre as circunstâncias do erro, desde que isso encerre determinados conflitos. Conversando com outros amigos negros, percebi que isso é muito comum entre a gente. Muitas vezes aceitamos esse lugar do “monstro” como real, como algo que nos define e passamos a olhar para nós mesmos a partir dessa ótica que é, no mínimo, injusta. 

Erros relativamente comuns tomam proporções muito diferentes quando a culpa é direcionada a uma pessoa negra, isso porque, de certo modo, já se espera da pessoa negra que ela seja culpada, violenta, agressiva, etc. Entender isso exige de nós mesmos a compreensão de que nos responsabilizar por erros não pode passar pelo lugar de aceitar sermos definidos por esses erros. Não somos monstros porque erramos. Não somos apenas os nossos erros.

Lidar com a culpa precisa passar pela compreensão do erro, pelo aprendizado e pelo perdão. O caminho que desconsidera isso, favorecendo somente a criação da imagem de “monstro”, além de racista, é, também, desumanizador.

Provocar essa reflexão, ao contrário que muita gente (geralmente branca, rs) pensa, não é sobre propor uma “passação de pano” generalizada e isentar homens negros de crítica. Pelo contrário, passa longe disso. É sobre desnaturalizar o olhar violento que se aciona ao olhar para essas pessoas (e que mesmo nós acionamos ao olhar para nós mesmos). É sobre estender a esses corpos a humanidade que garante a possibilidade de perdão – há muito já oferecida a todos os brancos. Precisamos urgentemente viver o direito de nos concentrar sobre as nossas potências e nos definir a partir delas.

Foto de capa: Tingey Injury Law Firm/Unsplash.

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