Com muita firmeza na fala e no olhar, Glória Freire tem a determinação de quem sabe o que quer e aproveita as grandes oportunidades oferecidas pela vida da melhor forma possível. Mesmo com toda essa força, o sorriso doce da jovem de 25 anos também traz a serenidade necessária para enfrentar o que se coloca diante dela.
E o que a vida colocou à frente de Glória foi uma mudança de rota drástica. Não fosse isso, ela poderia estar trabalhando em algum veículo de comunicação nos dias de hoje. Porém, o Jornalismo se distanciou da vida da cearense por causa de um contratempo em casa.
“Eu queria fazer Jornalismo, né, só que meu pai não pagou a taxa do Enem [Exame Nacional do Ensino Médio], que eu faria para ingressar no Jornalismo, já estava estudando e tal. Você paga a taxa do Enem em maio, [e eu] já estava estudando desde o início do ano para o Enem. Mas, enfim, é uma coisa que acontece na vida”, disse Glória. Dessa forma, o caminho foi sendo pavimentado para que ela se tornasse Supervisora de Futebol do Centro de Formação de Atletas Tirol – ou, simplesmente, Tirol –, cargo que ocupa há dois anos.

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Início da carreira
“Se a vida te der um limão, faça uma limonada”. Talvez seja o dito que mais se aproxima aos passos de Glória a partir daquele momento. Para que não perdesse um ano, já que não poderia fazer o Enem, ela aproveitou a nota do vestibular feito no ano anterior para tentar entrar em um curso. O escolhido foi o de Gestão Desportiva e de Lazer, no Instituto Federal do Ceará (IFCE).
“Eu fui para lá, comecei esse curso. Eu já sabia que as pessoas que fazem gostavam muito, já conhecia algumas professoras do curso. Então, eu entrei nesse curso, não seria um tempo perdido. Graças a Deus, foi, enfim, um divisor de águas na minha vida, porque eu gostei muito, e, logo quando eu entrei, eu comecei a participar de várias bolsas de extensão”, conta Glória Freire.
Foi por causa de uma dessas bolsas de extensão, a “Academia & Futebol”, que Glória teve o primeiro contato com o futebol profissional. O mundo de possibilidades que se desenha com a oportunidade deu à jovem o impulso necessário para que encontrasse uma vocação que ela não conhecia.

O Academia & Futebol é um programa promovido pela Secretaria Nacional de Futebol e Defesa dos Direitos do Torcedor (SNFDT), do Ministério do Esporte e realizado em parceria com o IFCE. O objetivo é apoiar a produção e a difusão de conhecimentos, bem como a oferta de formação na área do futebol e modalidades derivadas, como futsal, beach soccer e outras.
“[Na época], eles [o programa] precisavam de um local para ter a vivência da prática do futebol, e eles
escolheram o Tirol, que na época era o Grêmio Recreativo Pague Menos, e eu comecei lá”.
Glória Freire
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O que é o Tirol?
O Tirol é um clube-empresa (também conhecido como SAF, no universo esportivo) sediado no bairro Carlito Pamplona, em Fortaleza (CE), e fundado em 2011, vinculado à rede de farmácias Pague Menos. Inicialmente, a ideia da instituição era servir como apoio para trabalhos sociais com os jovens da comunidade e com pessoas ligadas aos funcionários da farmácia.
Em 2018, filiou-se à Federação Cearense de Futebol (FCF) na categoria amador. Três anos mais tarde, tornou-se profissional e iniciou a trajetória na Série C do Campeonato Cearense. Em 2024, o Tirol foi campeão da segunda divisão e conquistou o tão sonhado acesso à elite do Estadual, ao vencer o Cariri por 3 a 0 na grande decisão da Série B.

No ano de estreia na primeira divisão do Cearense, o Tirol terminou a competição em 6º lugar dentre nove clubes. Na fase inicial, a equipe terminou em 2º do grupo B, atrás apenas do Fortaleza Esporte Clube. Foi eliminada nas quartas de final para o Ferroviário Atlético Clube, com placar agregado de 5 a 1 (2 a 1 no primeiro jogo e 3 a 0 no segundo).
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O dia a dia e a oportunidade no futebol
Desde o começo, quando ainda era estagiária, Glória Freire sentiu identificação imediata com o cargo. Ao longo de dois anos, ela pôde trocar experiências com outros funcionários na função e compreender as vivências e questões do cotidiano.
Quando o então supervisor de futebol do Tirol recebeu um convite para trabalhar em outro clube, Glória teve acesso à oportunidade que estava preparada para ter. A partir de outubro de 2023, ela se tornou a supervisora de futebol do Tirol, já enquanto clube profissional que disputava a terceira divisão do Campeonato Cearense.
“Não foi o que eu pensei em fazer, mas aconteceu, e eu estou muito feliz, porque eu gosto muito de fazer o que eu faço. E como fui eu que me descobri fazendo, todos os dias, eu tenho duas opções: ou
eu me doo bastante para aquilo ali, para dar certo e continuar aprendendo, ou eu vou me frustrar naquilo ali”, analisou a profissional.

Com esse processo, Glória pôde acompanhar toda a evolução física, estrutural, de mentalidade e de investimentos, que resultaram na breve ascensão da Série C para a A em um intervalo de dois anos. “Hoje, a gente tem uma estrutura muito boa, talvez uma das melhores do estado, principalmente para a base, para o futebol de base. Quando eu entrei lá, não tinha nada daquilo. Eu lembro que a primeira vez que eu fui lá, eles ainda estavam fazendo o campo. Hoje, o campo é sintético, e a gente participou de toda essa profissionalização. A profissionalização é uma busca constante“, declara Freire.
Gerir é uma das etapas mais complexas de qualquer organização. No futebol, não é diferente. Especialmente em clubes que estão em ascensão, os gerenciamentos de estruturas, de verbas, de crises e de pessoas é fundamental para garantir o sucesso a curto e a longo prazos.
E o que, exatamente, faz uma supervisora de futebol? Quem ocupa essa função é responsável por organizar todas as atividades relacionadas a cada uma das equipes de futebol; seja masculino ou feminino, profissional ou de base, desde a logística, a inscrição e transferência documental dos jogadores até a gestão de materiais. Nesse contexto, os desafios são os mais diversos para qualquer pessoa. E para uma mulher, tem diferença?
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Os desafios de Glória na função
Glória afirma que, desde quando chegou até hoje, sempre existiram mulheres nos mais diversos cargos no Tirol. A maioria não em funções de gestão. “Quando eu entrei no Tirol, em junho de 2021, já tinham duas mulheres lá, uma delas é ainda, até hoje, serviço geral, e a outra era coordenadora administrativa, também até hoje. [Hoje] Tem outras várias, tem fisioterapeuta, tem psicóloga, assistente social…”, conta.
A jovem gestora esclarece que sempre se sentiu acolhida e ouvida dentro do clube, mas reconhece que essa pode não ser a realidade de mulheres que trabalhem em outros espaços, visto que o futebol ainda é um esporte extremamente machista.
Quanto mais próximo do topo da hierarquia organizacional de uma empresa, mais difícil a existência de mulheres. Quando existem, a porcentagem de mulheres negras, como Glória, é quase inexistente. Essa ideia é uma exemplificação do conceito de “Teto de Vidro”, utilizado pela primeira vez em 1985 pelo The Wall Street Journal (EUA).
Para Glória, os desafios que enfrenta no dia a dia são intrínsecos à função em si, mas o fato de ser uma mulher negra conduz à sensação de que é preciso fazer ainda mais para se afirmar.
“Muitas vezes, a gente tem que se provar mesmo. A gente não vive isso lá no clube, é muito confortável, mas eu acho que de uma maneira externa, no contexto geral, existe muito isso”.
Glória Freire
“Acho que estamos nessa movimentação para aumentar [o número de mulheres em cargos de liderança no futebol], mas acho que ainda estamos em um ponto de uma maneira muito tímida. E gosto muito da área da Federação Paulista de Futebol, admiro muito, principalmente pela organização e por todas as atividades que eles fazem, tudo que eles dispõem. Lá, você vê muito a presença [feminina]. Eu fui para a Copinha [Copa São Paulo de Futebol Júnior, torneio do futebol masculino sub-20 que ocorre anualmente em São Paulo] esse ano, e ninguém chegou, como vários chegaram a dizer: ‘Ah, é uma supervisora, é uma mulher’. Não, para eles tudo bem, é uma supervisora, é só mais uma, entende? É nessas horas que você vê a diferença de você chegar aqui, que é uma surpresa [ver uma mulher ocupando um cargo de gestão no futebol]”, percebeu Glória Freire.
A gestora entende que o principal desafio do cargo é encontrar os lugares que forneçam o que é necessário para uma constante especialização. Ela acredita que isso se deve ao fato de poucas pessoas conhecerem a função e compreenderem que podem exercê-la. “Você vai aprendendo, literalmente, na marra. Porque, você não tem um curso, minimamente. Então, eu acho que no futebol, de uma maneira geral, eu penso que existem poucos cursos”, disse.
“São desafios constantes. Mas, com as quais a gente aprende as habilidades. E, quando você
tem o suporte, dá um apoio dentro da sua realidade e torna tudo mais fácil”.
Glória Freire

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Como conciliar o trabalho com a vida pessoal?
Como todas as pessoas que lidam profissionalmente com futebol, Glória já iniciou na função sabendo que teria que abrir mão de finais de semana e feriados com a família e os amigos para trabalhar.
“É uma rotina diferente. Mas, hoje, é confortável. Como eu tive dois anos sendo estagiária, quando eu fui
chamada para assumir, muita coisa eu já sabia. Então, assim, eu já meio que conhecia a realidade. E já
estava meio que preparada, né?”, contou, entre risos. “A minha família já entende que sábado eu saio de manhã e só volto à noite. Muitas vezes, tem dia, por exemplo, que saio só 20 horas”.
Em um ambiente majoritariamente masculino e machista, com cargas normalmente pesadas de trabalho e que tenta deixar as mulheres de fora, Glória trabalha incansavelmente pelo que acredita e molda as próprias escolhas de um ponto de vista humano e preocupado com o desenvolvimento de atletas e do clube em si.
Se, antes, as pessoas pouco conheciam sobre a supervisão de futebol, que Glória se torne, agora, espelho para tantas outras mulheres negras que possam se identificar e correr atrás dos sonhos no meio esportivo.
Foto de capa: Gabriel Insano.
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Jornalista graduada pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Editora-adjunta do Site Negrê e autora do livro-reportagem “Passa a Bola pra Elas” (2021). Apaixonada por basquete, automobilismo e futebol; produz conteúdos sobre a vivência de atletas negros e negras no esporte. É ainda repórter do Novo Basquete Brasil (NBB) em Fortaleza (CE).