Atualizado às 23h26 do dia 19/01/2021
A prática africana e preta Kemetic Yoga é mais um exemplo das expressões socioculturais que foram embranquecidas devido a uma sociedade colonialista e epistêmica, a qual estamos inseridos. Por isso, é comum a perspectiva do yoga como uma prática de raízes brancas, principalmente porque muitos praticantes são brancos.
Não é apenas uma prática de esporte, arte ou cultura e sim um resgate ancestral e milenar de uma prática espiritual e preta. Além de fortalecer identidade e história, o Kemetic Yoga é um sistema egípcio que alinha a mente, p espírito e o corpo. Nasceu no Continente Africano (existem inúmeras posturas registradas em pirâmides egípcias) que comprovam suas raízes no Egito Antigo e Etiópia.
Das pirâmides de Kemet à atualidade
Para o colonialismo, sempre foi inaceitável a ideia de um Kemetic avançado, próspero, desenvolvido e preto. Isso não apenas originou o embranquecimento de suas conquistas, práticas e culturas, mas também no apagamento destas.
Das pirâmides de Kemet à atualidade, a Kemetic Yoga é composta em filosofia e prática. Como filosofia, se apresenta como um conjunto de conhecimentos ancestrais e africanos que norteiam a rotina em estado de Ma’at (energia da natureza que conduz ao equilíbrio), harmonizando corpo, mente, emoções e espírito.
A partir desta filosofia, ela também se organiza na prática de posturas resgatadas de pirâmides de Kemet que visam aumentar a circulação de Sekhem (energia vital) e trazer maior equilíbrio dos corpos físicos, psicológicos e espirituais.
Instrutora há um ano, Glauce Pimenta, 44, ressalta a importância desse resgate como (re)conexão ancestral e com si mesmo para as pessoas pretas:
“O futuro é Ankhcestral! Reatualizar as ciências, os saberes ancestrais para ressignificar nosso dia a dia. Dentro de todos nós habita a infinita sabedoria das eras e a força criativa sagrada de Tudo o que é, será e sempre foi. Estamos aqui para descobrir as partes mais profundas de nós mesmos, aquelas que são realmente importantes. Conhecer e curar a si mesmo são os objetivos da prática de Kemetic Yoga. A meditação pode ser usada para estabelecer conexão com os ancestrais são ferramentas profundamente poderosas de autoconhecimento e cura”.
Além disso, Ana Sou, 41, explica o porquê é urgente compreender e divulgar uma prática ancestral:
“Nosso ancestrais são os que vieram antes de nós, nossos pais, avós e também os que foram escravizados e não conhecemos, mas também aqueles que antes da escravização criaram as maiores civilizações antigas. Todos são nossos ancestrais. Então, nosso corpo é também um troféu por carregar as memórias energéticas e genéticas de todos que vieram antes. Apesar de todo processo de dor e escravização, conseguimos, estamos vivos. E honrar esse corpo e fazer com que ele funcione da melhor forma, é reverenciar nossos ancestrais”.
O Kemetic Yoga e a saúde
O Ministério da Saúde incluiu yoga e meditação como parte das Práticas Complementares de Saúde (PICS). Uma vez que as pesquisas apontam que estas práticas fortalecem o sistema imunológico, restauram o equilíbrio psicoemocional e são associadas a terapias para combater o estresse, depressão e traumas.
O índice de suicídio entre jovens negros é até 45% maior do que entre jovens brancos, segundo o Ministério da Saúde. Psicólogos como Lucas Veiga, Roberta Frederico, Janete Tavares e Nayara Gomes, adeptos da Psicologia Afrocentrada, alertam sobre os prejuízos do racismo para saúde mental da população negra.
A professora Ana Sou ressalta a historicidade por trás desse cuidado e dessas práticas referentes à saúde existentes no Kemetic Yoga:
“Os profundos ensinamentos ancestrais da nossa cultura africana entendem que nós somos espíritos, seres infinitos e o nosso corpo é apenas a morada temporária do espírito. Por causa deste entendimento, a civilização de Kemet (que hoje conhecemos como Egito devido à escravização e ao apagamento cultural) se desenvolveu em inúmeras ciências, dentre elas, a de saúde, pesquisando e criando tecnologias que usamos até hoje, como: prótese amputação, conservação de órgãos, contraceptivos. Eles se tornaram autoridades em saúde e grifaram nas paredes das pirâmides os conhecimentos que eles achavam essenciais, que não poderiam se perder. Dentre esses conhecimentos está o que hoje entendemos como Kemetic Yoga”.
A psicóloga Carla Gomes, 34, que há seis meses pratica o Kemetic Yoga com a instrutora Glauce Pimenta Rosa, 44, relata os benefícios em sua vida e saúde. “Sou uma pessoa de Axé, então minha vida sempre foi atravessada pela espiritualidade. Além disso, sou psicóloga e me dedico ao cuidado mental de mulheres negras, sempre tive interesse e estudei práticas corporais ao longo da minha trajetória profissional porque sinto que são ferramentas que auxiliam muito nesse trabalho com a psique”, disse.
Carla ainda complementa. “Então, a Kemetic Yoga me trouxe tudo isso junto, apesar de já ter a experiência com a Yoga indiana não sentia que a filosofia indiana me contemplava, o que foi muito diferente com a filosofia kemética, pois sendo uma mulher negra todas as referências teóricas e práticas funcionam como um espelho onde me vejo, vejo os meus ancestrais e a minha continuidade. […] É um mergulho em si, mas também o investimento num futuro preto, onde tanto eu como outras pessoas pretas possam estar vivas e saudáveis. Tenho indicado para muitas pessoas que acompanho na clínica”.
Espiritualidade e bem-estar
É imprescindível falar sobre espiritualidade, estilo de vida e bem-estar (físico e mental) quando falamos sobre Kemetic Yoga, isso acontece porque a prática está atrelada a mudanças no hábito de vida que permitem a expansão do bem estar, saúde e a relação com a espiritualidade. Glauce Pimenta evidencia isso: “[…] É concentração desde dentro, leveza, serenidade, pois quando estamos conectados às nossas raízes, à nossa essência, somos mais fortes, somos uma manifestação divina na terra”.
“Kemetic Yoga, enquanto um sistema Afrikano de auto-desenvolvimento, por ser baseado nos ensinamentos científicos-espirituais dos nossos ankhcestrais do Vale do Hapy (Nilo), nos coloca em contato direto e prático com nossa verdadeira história e cultura. Desde tempos imemoráveis, diferentes imagens retratadas na arte e escritos sagrados, comprovam a existência de práticas de cultivo de energia interna no sistema espiritual keméticos, incluindo respiração, meditação, movimentos e posturas corporais”.
Carla Gomes, psicóloga e aluna do Kemetic Yoga garante que “com certeza é um estilo de vida” e ainda completa. “Sinto que a prática produz muitas mudanças internas. Na minha percepção, ela produz mudanças celulares mesmo, que mudam não só o seu corpo aliviando tensões e dores musculares, mas também dores afetivas, até porque na maior parte das vezes são uma mesma dor. Está tudo integrado. Com isso, a prática muda padrões mentais”.
Para além disso, Carla comenta também sobre os impactos em seu cotidiano. “Sem uma cobrança estética, de ter a postura perfeita ou a alimentação perfeita, o que é muitas vezes bastante excludente. E eu, aos poucos, fui sentindo naturalmente a vontade de reduzir o consumo de carne, de aumentar o consumo de alimentos crus. Além disso, os sintomas de ansiedade, principalmente nesse período da pandemia, foram melhorando, eu passei a dormir melhor e também percebi que quando faço a prática ao longo do dia minha energia vital é outra, tenho muito mais disposição física e afetiva para estar no mundo”.
Conheça o trabalho das pretas
Ana Sou
Tem 41 anos, é instrutora e Sbat de Kemetic Yoga, faz parte da primeira geração de instrutores de Kemetic Yoga, certificados no Brasil pela Yoga Skills School of Chicago (EUA) do Sba Yiser Ra Hotep.
Foi instrutora da Kasa de Ma’at, principal referência de Kemetic Yoga no Brasil. Teve seu primeiro contato com Yoga em 1994 e, durante sua formação em Hatha Yoga (base indiana), descobriu e se apaixonou pela Kemetic Yoga (base africana).
Ana pesquisa, pratica e divulga continuamente desde então. “Quero oferecer o que sinto, quero sentir o que ofereço. A Kemetic Yoga é a revolução que começa por dentro”.
Contato via Instagram – @anasou.a
Glauce Pimenta Rosa
Glauce tem 44 anos, instrutora há um ano, é integrante da primeira turma de Kemetic Yoga e uma das 33 instrutores do Brasil.
Seu primeiro contato foi pesquisando no Facebook, quando conheceu o Projeto Yoga Afrikana Brasil, através do irmão Rafael Arah, que faz parte da equipe da Katiuscia Ribeiro, do Geru Mãa – Filosofias Afrikanas, em 2016. Permaneceu (e permanece) estudando sobre Yoga Africana, conheceu a Kasa de Ma’at e foi selecionada no processo de seleção.
Aulas online via plataforma Google meets.
Contatos via Instagram – @glauce.pimenta.rosa e @kazawasaberesancestrais
Foto de capa: Kanu Trindade/Estúdio YMA.
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Conheça o Negrê Podcast:
Jornalista em formação pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e afropesquisadora. Atualmente, estuda movimento negro e juventude em Minas Gerais, mas já aprofundou em racismo institucional e racismo e mídia. Também se interessa por cultura, música (principalmente rap nacional!) e política, sobretudo pelo modo que essas pautas dialogam com negritude no Brasil. É fotógrafa nos horários vagos (com a percepção e admiração pela maneira que a fotografia e o fotojornalismo narram realidades e perspectivas). Além disso, também é militante pelo Levante Popular da Juventude, comunicadora e coordenadora de cultura do Coletivo Negro KIANGA.