O Apartheid foi uma ditadura de severa segregação racial, de início em 29 de junho de 1948 – quando o Partido Nacional (National Party) vencia as eleições na África do Sul –, completou 70 anos de sua instauração em junho de 2018. Mesmo ano em que foi celebrado ainda o centenário do ativista Nelson Mandela (1918-2013), uma das principais vozes de resistência. Em 2019, completou apenas 25 anos do declínio (institucionalmente) do regime.
Apartheid vem do africâner (língua sul-africana) e significa separação. Foi, então, no contexto das regiões da África do Sul onde essa ditadura foi instaurada, categorizando e julgando pessoas pela cor de pele, mesmo critério usado para definir o nível de relevância e atribuição de privilégios do indivíduo perante a sociedade.
Durante 46 anos na história da África do Sul, localizada no extremo Sul da África e considerada a segunda maior economia do Continente Africano, o sistema dividiu a sociedade sul-africana com legislações, definindo normas, como educação segregada, proibição de casamentos interraciais, deportações forçadas de indivíduos considerados “inadequados” para compor a população e exercer a cidadania dos sul-africanos. A conhecida Lei da Imoralidade (1950), caracterizava crime ter relações sexuais com pessoas de distintas raças.
“A história do apartheid é melhor entendida, eu diria, como a história do impacto do colonialismo à medida que evolui da Europa através do desenvolvimento do capitalismo nas sociedades africanas indígenas e junto com as da Ásia e das Américas”, são declarações do sul-africano e ativista Brian Kamanzi, 29, nascido durante o fim do regime e cuja vida se desdobrou na chamada “nova” África do Sul, como se refere.
Sistema
A classificação racial era método de funcionamento e controle social, segundo observações da historiadora, doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília (UNB) e professora na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) Natalia Cabanillas, 39. A Lei de Registro Populacional (1950) segregava a população pela raça e as definia no próximo censo, por meio de cartão de identidade.
“Não era uma classificação racial por autodefinição. O agente estatal censitário ia definir qual era a raça da pessoa e registrar no documento. Essa política impunha uma classificação racial e deu resultados absurdos”. Tanto que havia situações contraditórias em que pais e filhos poderiam ser classificados em grupos de raças distintos e, portanto, designados para morar em bairros de realidades diferentes.
“A mãe pertencia a um grupo racial e os filhos a outro. Então, ela ia morar num bairro e os filhos em outro. Cada classificação racial ia permitir essa diferença”, descreve a historiadora Natalia Cabanillas.
A professora universitária enfatiza ainda a classificação racial como recurso para fins de controle e não de forma de contabilidade étnico-racial. A classificação de raças na África do Sul no contexto do Apartheid era feita a partir da definição das pessoas em brancas, indianas, mestiças (“coloureds”) e negras. A medida em que o tom de pele do indivíduo se aproximava da cor branca, maior era seu privilégio e direitos na sociedade sul-africana. Os brancos abrangiam os que falavam inglês e africâner de modo que os negros faziam parte de dez tipos de grupos linguísticos.
Outras imposições
O sistema do Apartheid afetou também nas formas de habitação dos sul-africanos. A Lei de Áreas de Agrupamento (1950) impactou as áreas urbanas e os locais de integração. Cada pessoa viveria em um bairro de acordo com a raça que lhe fosse definida. A professora Natalia Cabanillas relata, de acordo com suas vivências durante 18 meses na cidade do Cabo, na África do Sul, acerca da permanência de uma dinâmica urbana e arquitetônica imposta por esta lei.
“Essa diferença instituída pela classificação racial se reproduzia em todos os setores da vida. Dependendo da raça, era definido em qual lugar para morar, qual tipo de moradia, que tipo de escola vai frequentar, qual biblioteca terá acesso, qual tipo de teatro pode ir. Não podia assistir nem o jogo de futebol no mesmo estádio. Não tinha nenhum espaço de integração!”, dispara Cabanillas sobre o que tomou consciência.
Diversas outras leis integraram também o regime separatista, a exemplo da Lei de Proibição dos Casamentos Mistos (1949), Lei de Reserva dos Benefícios Sociais (1953), Lei de Educação Bantu (1953), Lei de Minas e Trabalho (1956) e Lei de Cidadania da Pátria Negra (1970).
Ao analisar o Apartheid, o ativista Brian Kamanzi opina que o sistema não era, simplesmente, um conjunto de leis. Negros sul-africanos foram divididos em regimes coloniais e tribos, controlados por líderes tradicionais que contribuíram com as classes dominantes.
“O Apartheid foi uma transformação de formas mais antigas de exploração e opressão para criar uma economia industrial que melhoraria em grande parte as condições de vida da maioria dos cidadãos brancos”, considera o engenheiro eletricista.
Grito de resistência
Conhecido pelo seu clã como Madiba, Mandela foi um advogado por formação e é tido como um dos principais gritos de resistência ao Apartheid. Foi presidente da Liga da Juventude do Congresso Nacional Africano ou African National Congress Youth League (ANCYL). Lutou contra o regime segregacionista ao lado de ativistas, como Anton Lambede (1914-1947), Walter Sisulu (1912-2003) e Oliver Tambo (1917-1993), organizando movimentos desde desordem civil a greves e protestos.
Além destes, Winnie Madikizela (1936-2018), uma de suas esposas, também foi ativista anti apartheid. Mandela foi detido várias vezes, por consequência da repressão da Lei de Repressão ao Comunismo (1950). No ano de 1936, foi condenado à prisão perpétua no Julgamento de Rivonia (1964). Após 27 anos no cárcere, foi libertado por pressões internacionais.
Quais os destroços da segregação
Para o sul-africano Brian Kamanzi, ainda permanece nos dias de hoje a mesma realidade e os recursos do governo são mesmo divididos a partir da cor da pele, em que aquele indivíduo cuja cor de pele se aproxima mais da pele branca tem mais direitos.
“Nas principais cidades em áreas pós-apartheid, as áreas urbanas, as classes médias têm se tornado cada vez mais diversificadas, porém os sul-africanos negros continuam marginalizados economicamente e alienados culturalmente dos sistemas legais [acesso à moradia, currículos escolares, serviços básicos, como água e eletricidade]”.
Os resquícios do Apartheid ainda escorrem pele de quem vive na África do Sul, seja nativo ou estrangeiro. Na visão de Armando Barros, 23, natural de Goiânia-GO, bailarino profissional do Joburg Ballet, as marcas do regime estão firmes na realidade em que ele está inserido, o chamado pós-Apartheid nos dias de hoje. Barros reside no país sul-africano desde agosto de 2017.
“O fato de muitas pessoas que viveram esse período do regime de segregação racial ainda estarem vivas, mostra o quanto a história é recente. E que apesar das pessoas serem obrigadas a mudar a forma de agir, alguns dificilmente irão mudar a forma de pensar. O preconceito ainda existe em muitas pessoas, e está enraizado em várias famílias Afrikaners [grupo étnico sul-africana]. Um exemplo, que eu já ouvi de mais de uma amiga de pele branca é dizer que jamais poderiam se casar com algum homem de pele negra. Porque apesar de seus pais não interferirem muito nas escolhas, seus avós jamais aceitariam. Então, é possível perceber que a nova geração tem um pensamento diferente, mas um certo bloqueio e receio quando existe a possibilidade de irritar os parentes mais velhos de suas famílias”.
O brasileiro aponta que já percebe brancos e negros como grandes amigos, mas que ainda não vê brancos se casando com negros. “E isso é a prova de que o preconceito ainda vive escondido na África do Sul. É extremamente difícil ver um casal interracial nesse país”, diz.
“No meu ponto de vista muitas coisas mudaram, mas ao mesmo tempo vejo que muitas coisas ainda precisam mudar. Eu costumo comparar os 26 anos pós-apartheid como um bebê, que ainda está engatinhando, procurando pelos melhores caminhos, explorando possibilidades. E nas várias tentativas de se levantar a falha, o cair, acontece inúmeras vezes. É claro que uma sociedade que sofreu por tantos anos precisa de mudanças drásticas e rápidas, mas também cautelosas”.
Armando Barros explica ainda que o governo sul-africano instituiu o programa Black Economic Empowerment (BEE). No qual, é uma forma de empoderamento econômico para promover a transformação e aumentar a participação econômica dos negros na economia sul-africana. “O sistema causou um impacto enorme, e ajudou muitos negros nos primeiros anos, mas hoje é visto de uma forma diferente por muitos, e acaba causando uma divisão de opiniões. Explicando de uma forma simples, o programa basicamente funciona como um sistema de cotas, onde negros têm o direito de uma vaga de emprego em empresas”.
O objetivo do programa, segundo à Constituição sul-africana, é conceder a todas as pessoas da África do Sul o direito à igualdade. Armando relata que uma parte da população negra, hoje, não gosta de associar a imagem deles com o programa. E, na sua visão, ainda acredita que o governo poderia tomar outras medidas, mais atuais.
Foto de capa: Keystone/Getty Images.
Jornalista profissional (nº 4270/CE) preocupada com questões raciais, graduada pela Universidade de Fortaleza (Unifor). É Gestora de mídia e pessoas; Fundadora, Diretora Executiva (CEO) e Editora-chefe do Negrê, o primeiro portal de mídia negra nordestina do Brasil. É autora do livro-reportagem “Mutuê: relatos e vivências de racismo em Fortaleza” (2021). Em 2021, foi Coordenadora de Jornalismo da TV Unifor. Em 2022, foi indicada ao 16º Troféu Mulher Imprensa na categoria “Jornalista revelação – início de carreira”. Em 2023, foi indicada ao 17º Troféu Mulher Imprensa na categoria “Região Nordeste” e finalista no Prêmio + Admirados Jornalistas Negros e Negras da Imprensa Brasileira em 2023 e 2024. Soma experiências internacionais na África do Sul, Angola, Argentina e Estados Unidos.