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O capitalismo NÃO pode ser antirracista

Na semana passada, um texto intitulado “O capitalismo pode ser antirracista” foi publicado na Folha de São Paulo. Trata-se de uma coluna, como esta que agora escrevo, assinada por Irapuã Santana, doutor em Direito. A estrutura argumentativa do texto é mais ou menos a seguinte: 1) o autor tenta desvincular racismo, escravidão e capitalismo, dizendo até mesmo que o capitalismo foi responsável por acabar com a escravidão; 2), ele diz que “o poder transformador do capitalismo reduziu a desigualdade e a pobreza no mundo, chegando ao marco de as pessoas pobres serem minoria, desde 2018”; 3) ele argumenta que o capitalismo não pode, diante da magnitude desses dados, ignorar demandas que envolvem tantos consumidores em potencial; 4) como negros e negras são grandes consumidores, suas exigências podem mudar o posicionamento e a cultura das empresas, fazendo do capitalismo um aliado em potencial da luta antirracista. Pois bem, vamos à realidade:

Capitalismo e raça (ou: escravidão é uma invenção liberal)

O capitalismo tal qual conhecemos é realmente posterior à escravidão mercantil. Entre o surgimento do mercado de negros escravizados e a consolidação do capitalismo, há um delay de mais ou menos dois séculos. O próprio Irapuã salienta que isso não significa que não houve uma relação íntima entre as teorias raciais que justificavam a escravidão e o desenvolvimento do capitalismo.

Contudo, o que ele parece ignorar é que a relação entre capitalismo e escravidão foi uma relação de dependência. Sem escravidão, a acumulação de riquezas e as estruturas de exploração da força de trabalho que foram fundamentais para o surgimento e a consolidação do capitalismo dificilmente teriam existido. Sem escravidão, o capitalismo não teria tido as bases em que construiu sua estrutura de classes. Além do mais, foi no seio da modernidade capitalista que o racismo tal como conhecemos hoje foi forjado, como uma estrutura do próprio capitalismo (e também por ele estruturado, em uma relação simbiótica).

No seguimento, ele fala mais ou menos que o capitalismo usou a escravidão em escala industrial para se consolidar, mas assim que ganhou força, o próprio capital (na figura dos liberais) se encarregou de acabar com a escravidão. Ora, a escravidão moderna, racial e mercantil, foi essencialmente uma invenção liberal. Por muito tempo, o que se ouvia dos capitalistas liberais era a defesa da liberdade de ter um escravo para chamar de seu. Há toda uma tradição filosófica liberal que endossa o trabalho escravizado.

Essa tese de que o capitalismo acabou com a escravidão (que, no caso brasileiro, toma a forma de “o que acabou com a escravidão foi a pressão dos ingleses”) é falaciosa, ultrapassada. Desde o final da década de 1950, temos literatura produzida no Brasil desmontando esse mito. Mito que, além de tudo isso, é também racista, pois ignora as lutas e resistências seculares de negros e negras na história deste país.

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil.

Capitalismo como redutor da pobreza

Agora a parte divertida: o autor sugere que o capitalismo, com seu irremediável poder transformador, é responsável pela redução da desigualdade e da pobreza no mundo. Fato este supostamente comprovado pelos cálculos da Brookings Institution, que concluem que as pessoas pobres são minoria no mundo desde 2018. Eu nem sei por onde começar. A Brookings Institution é uma organização cujas três cadeiras mais altas na hierarquia institucional são ocupadas por um general aposentado do exército estadunidense, um bilionário e uma advogada.

Para chegar a essa entusiasmada conclusão de que o capitalismo reduziu a pobreza e a desigualdade no mundo, a Brookings decidiu que alguém capaz de comprar uma moto, uma geladeira ou uma máquina de lavar não seria considerado pobre. Qualquer pessoa capaz de guardar carne por alguns dias em casa é tida como classe média para os efeitos desta pesquisa. Assim, ao juntar a gigantesca classe-nada-média que se formou com o clubinho dos ricos, percebeu-se que os pobres e as pessoas em extrema pobreza não chegavam mais a totalizar metade da população mundial. Uma nítida demonstração do vício liberal de ler a realidade somente com base em uma planilha do Excel. Vitória do capitalismo! Yay!

Tanto o estudo citado quanto o Irapuã parecem não estar interessados em lançar mão de uma definição mais verossímil para dividir quem é rico, pobre ou classe média, o que os fazem partir de uma premissa no mínimo esquisita. Além disso, desconsideram que metade das riquezas produzidas no mundo se concentra nas mãos de 26 bilionários. Ao contrário do que sugere o Doutor em Direito, a desigualdade social só cresce no mundo e isso está longe de ser um problema para o capitalismo.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.

Poder de consumo = poder de mudança?

Para concluir que o capitalismo pode responder à altura das demandas sociais, o colunista lança mão do argumento de que nós, negros, sendo também ávidos consumidores, teremos nossas exigências ouvidas pela indústria que depende do nosso “poderio econômico”. Ele embarca em um determinismo econômico e esquece de tentar traçar as características desse consumo. Esquece também de fazer uma análise histórica para verificar se as empresas têm mesmo essa tendência de se adequar àquelas exigências dos consumidores que vão além do âmbito do consumo. Esquece até mesmo que não são as empresas que organizam a vida social e que mudar hábitos de consumo não quer dizer muita coisa.

Em defesa da radicalização

Depois da tragédia que foi o assassinato de Beto Freitas em uma loja do Carrefour, em Porto Alegre, a gente pode perceber uma certa radicalização dos debates sobre a luta antirracista nas redes. Essa radicalização, antes que se pense outra coisa, não é ruim. Muitíssimo pelo contrário. Trata-se do entendimento de que só uma mudança radical na ordem vigente das coisas é capaz de trazer as soluções que queremos (no caso, o fim do racismo) para os problemas que temos (no caso, o racismo). A tal radicalização, portanto, não tem nada a ver com os tais “radicalismos” que costumam ser associados a extremismos e violência, convidando as pessoas a aderir a algum senso de moderação que, normalmente, é conservador. Penso que essa coluna foi uma resposta à radicalização, na qual o autor quis pintar a “moderação” do aceite do açoite como um caminho possível.

Capitalismo e racismo não são a mesma coisa, mas são intrínsecos um ao outro. Não é possível pautar o fim do racismo sem pautar a destruição daquilo que o estrutura: o capitalismo. Como o próprio Irapuã diz no seu parágrafo final, “entender os processos histórico e econômico é de suma importância para observarmos os instrumentos à nossa disposição e podermos mudar a realidade”. Entendendo a História, percebemos que o capitalismo não é responsável “só” pela exploração de classe. O capitalismo também produz, sustenta e dá corpo à política de morte perpetrada contra os nossos. Portanto, diferente do que conclui o Dr. Irapuã, o capitalismo não é um aliado e deve ser descartado no combate ao racismo. Um projeto verdadeiramente emancipatório deve ser radical, deve prever a destruição das estruturas. O capitalismo não pode ser antirracista.

Foto de capa: Abhishek Goel/Pexels.

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