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Afro-Resistência na Austrália e o ato político de fazer amigos negros

Eu entendo raça como uma construção social, eu reconheço que não existe base científica para diferenciação de raças. A raça humana é somente uma. Porém, na prática, nossa percepção de raça torna essas diferenças de fenótipo em diferenças reais. Infelizmente, uma coisa não pode ser desassociada da outra. 

Implorando por humanidade

Seguindo uma linha Jungiana (Carl Jung) de entendimento, a escritora Afro-Americana Dr. Fanny Brewster, diz que os efeitos do subconsciente no consciente podem ser devastadores. O corpo negro vem sendo degradado no subconsciente coletivo de pessoas brancas e também de pessoas negras por séculos. 

Ainda de acordo com Dr. Fanny Brewster, análises lógicas do consciente são guiadas por sugestões do subconsciente. Tanto negros quanto brancos antirracistas declarados estão contaminados por essa degradação no subconsciente. 

O que, consequentemente, exige a todos que no Brasil vivam, um esforço mental de realinhamento para que se possam normalizar o corpo negro como um corpo merecedor de humanidade. Após anos vivendo fora do Brasil, porém ainda sob os efeitos do racismo brasileiro, continuei a procurar minha humanidade no reconhecimento de outros. 

Por anos, tentei ser humanizado pelos olhos dos brancos brasileiros imigrantes que aqui vivem. Por anos, acreditei ser ‘diferenciado’ num exercício de auto ódio declarado. Eu achava que não agia como outros negros brasileiros, pensava ser inteligente, sofisticado e educado por isso merecedor da redenção branca. Aguardava o ‘‘passe’’ para minha humanidade plena. Eu nada exigia, nada demandava, tudo isso por um pouco de branquitude em troca.

Acredito que isso ocorra, infelizmente, com muitos negros em situação de minoria, seja por ascensão social ou por morar no exterior. Quando nessas condições, geralmente, somos “prestativos”, organizamos eventos, ajudamos outros brasileiros, estamos sempre dispostos… 

Não necessariamente porque somos inerentemente altruístas, mas sim porque desesperados, mendigamos humanidade que nessa patologia só pode vir de pessoas brancas. Agimos desta forma como fomos assim ensinados desde o nascimento para sobreviver.

Vivemos então numa specie de Neurrose do abandon, termo criado pela Dr. Germaine Guex nos anos 50. A neurose do abandono tem como tripé: a ansiedade criada pelo abandono, a agressividade criada pela eventual rejeição e eventualmente a desvalorização do eu pois o ego nunca se forma por completo. A falta de autoestima coletiva vivida por muitos negros vem de uma fissão entre o “eu real” (negro) e o “eu sonhado” (branco).

Afro-Resistência na Austrália 

Mesmo depois de eu estar na Austrália por muitos anos, foi somente em 2018, quando a psicóloga negra Kyky Rodrigues criou o Grupo Afro-Resistência Austrália, que realmente entendi que minha humanidade não viria das mãos de outros. E principalmente não viria das mãos ou da boa vontade de pessoas brancas. 

Desde sua fundação, o grupo Afro-Resistência vem desempenhando um papel fundamental em minha vida e na vida de vários membros. Negros brasileiros imigrantes que aqui vivem, dividem experiências que são específicas a nossa comunidade e que não existem nas comunidades euro brasileiras (chamam somente de “Brasileiros em nome da cidade”) fora do país.

Ter amigos negros é um ato político

Uma das primeiras coisas que eu notei após a criação do grupo é o quanto nossas amizades são um ato político. Nunca havia me dado conta que amizades são uma escolha consciente e inconsciente, e que a maioria dos meus colegas, amigos e amigas eram brancos e brancas. Isso nunca foi um acidente.

De 2018 para cá, isso mudou radicalmente. Fiz muitos amigos no Afro-Resistência e notei que isso aconteceu também com vários outros membros do nosso grupo. Existem agora “amizades orgânicas”, de pessoas que antes nunca tinham tido amigos negros ou tinham tido poucos amigos negros no passado.

Guido Melo e amigos do grupo Afro-Resistência na Austrália. Foto: Arquivo pessoal.

Para alguns leitores, pode parecer que estamos nos “segregando”, mas na verdade, estamos apenas nos libertando da segregação estrutural imposta pela branquitude brasileira. No Brasil, especialmente entre as classes média e alta, é comum você ir a uma festa, restaurante ou eventos onde não tenham negros ou apenas tenham um ou dois. Recentemente, quando visitava o Brasil, fui à festa de uma amiga na Zona Sul do Rio de Janeiro para 400 pessoas, onde tinham apenas dois negros: a faxineira e eu. Poucos questionam, por quê?

Afro-Resistência para o futuro

Hoje, o Afro-Resistência, além de um grupo social, também está focado em ativismo e black money. Vários membros do grupo trocam prestação de serviços, compartilham trabalhos e outras atividades. No momento, nossos grupos no Facebook e no WhatsApp estão abertos exclusivamente para membros negros que já estão morando na Austrália. No entanto, quem estiver no Brasil e tiver interesse em nos acompanhar, é só nos seguir no Instagram @afroresistenciaau. Muito mais estar por vir. Isso é somente o começo.

Ubuntu.

Foto de capa: Arquivo pessoal.

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