O título Quarto de Despejo: diário de uma favelada (1960), obra de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), publicada pela primeira vez há mais de 60 anos, faz referência ao momento de despejo de pessoas negras e pobres para as favelas do Brasil. Para a autora, a favela é o quarto de despejo das cidades. Lugar que se direciona e direcionará a estigmatização de suas(seus) moradoras(es), além de diversas violências institucionais. Refletindo sobre as palavras de Carolina e sobre a realidade atual do país, o Brasil não seria um quarto de despejo?
A história já mostra que o Brasil foi e é, de fato, construído em meio às desigualdades e isso é, nitidamente, notado ao observarmos como se dá a má distribuição de recursos e as possibilidades de acesso à alimentação, saúde pública de qualidade, o direito à vida em geral. Assim, vale relembrar um questionamento do livro Diário de Bitita (1982): “Será que vamos ter um governo que preparará um Brasil para os brasileiros?”.

Trazer obras da Escritora Doutora Carolina Maria de Jesus para compreendermos o que ainda estamos vivenciando hoje, é estar em alerta para o que ela já estava falando e escrevendo, antes mesmo dos anos 1960. E como sua realidade não se distancia tanto do Brasil de hoje para as pessoas negras e demais grupos historicamente subalternizados.
“Ontem comemos mal. E hoje pior.”
Carolina Maria de Jesus (1914-1977)
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Não ter o que comer
A fome, que foi a realidade mais dolorosamente descrita por Carolina Maria de Jesus em suas obras, evidencia seu cotidiano junto de seus três filhos – Vera Eunice de Jesus Lima, João José de Jesus e José Carlos de Jesus -, em seu barraco, em São Paulo (SP). Mostra o cotidiano da mulher que viu na escrita uma forma de refúgio. Demarca também o quão próximo da morte pode-se chegar com a barriga vazia. Morre-se aos poucos. Como se manter de pé quando não há nem o que comer?

Dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (2021), realizado pela Rede PENSSAN, explicitam a Insegurança Alimentar nas residências urbanas do país e ainda mais agravante nas áreas rurais. Atingindo em sua maioria grupos femininos, autodeclaradas pretas ou pardas (população negra) e das regiões Norte e Nordeste.
Essa realidade pode ser associada ao que o filósofo Achille Mbembe, 63, denominou de Necropolítica, que diferente do que Michel Foucault (1926-1984) teorizou, afirmando que as instituições de poder fazem viver determinados grupos, ao mesmo tempo em que deixam morrer outros. Para Mbembe, é mais que isso. Há uma necropolítica nas sociedades, uma política da morte, em que instituições de poder como o Estado, concretizam suas políticas, inserindo, por exemplo, o racismo nos mecanismos de controle estatal para atingir diretamente a vida de determinados grupos sociais, como pessoas negras, indígenas e demais grupos alvos.
“… Quando eu fui almoçar fiquei nervosa porque não tinha mistura. Comecei ficar nervosa. Vi um jornal com o retrato da deputada Conceição da Costa Neves, rasguei e puis no fogo. Nas epocas eleitoraes ela diz que luta por nós.”
Carolina Maria de Jesus (1914-1977)

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Concretude e Covid-19
Assim, é possível considerar que as formas em como essas políticas se concretizam variam, pois quando há políticas genocidas em curso, todos os âmbitos em que as populações alvo transitam e necessitam para sobreviver, não há garantia dessa sobrevivência. Esse é o ponto para falarmos sobre a fome. Um governo que não possibilita garantias de vida para sua população, que é contra auxílios financeiros que garantiriam o que deveria ser o mais básico da vida, como a alimentação, possui, de fato, uma política da morte. Matar de fome é uma de suas políticas. O Brasil ter retornado ao Mapa Mundial da Fome, como já demostrou pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é um registro.
É evidente que a pandemia do Covid-19 torna a situação agravante e, também deixou em contraste como o governo atual vem negligenciando as milhares de vítimas da doença. O que não pode deixar de ser considerado é que em governos que partem do viés prático neoliberal, qualquer contexto é um risco para sua população, pois a má distribuição de renda e falta de políticas públicas ainda farão parte da realidade do país. A fome ser alvo para o extermínio pode ser considerado um projeto arquitetado, como já demostrou, inclusive, o próprio curso da história mundial.
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E não é só a fome
E não só a fome, mas a falta de segurança alimentar e nutricional. A própria industrialização massiva de alimentos, a pouca atenção institucional para a agricultura familiar, a falta de informação para o que é uma boa alimentação, a ausência do direito na escolha do que comer… Situações causadas, principalmente, pela falta de recursos financeiros e desempregos, é uma das marcas do que podemos mais uma vez chamar de política da morte. Ou seja, não se alimentar ou se alimentar mal é o que se destina para a maioria das pessoas pretas e pobres no Brasil.
“O Brasil precisa ser governado por alguém que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no proximo, e nas crianças.”
Carolina Maria de Jesus (1914-1977)

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Projeto político
O atual Governo Federal, presidido por Jair Bolsonaro, 66, deixa nítido como o poder das políticas institucionalizadas são capazes de definir o presente e o futuro de cada brasileiro(a/e) e é, de fato, uma ferramenta de poder com tentativas de genocídio. Genocídio que pode ser brevemente compreendido com o extermínio de grupos sociais específicos, reforçado no contexto pandêmico, como por exemplo, a falta de atenção com grupos em diversas vulnerabilidades. Para que entendamos que há uma tentativa de genocídio, é preciso notar uma série de práticas governamentais de desestruturação sociais. O deixar morrer também fica em evidência.
Vale lembrar, que na sexta-feira passada, 23, o Governo Federal anunciou a suspensão do censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2021, alegando falta de previsão de recursos no orçamento do Governo. O mesmo Governo que já vem deixando irregularidades em toda sua gestão, deixando de tornar público dados fundamentais para o acompanhamento de como se dá o desenvolvimento do país. Já que com o desconhecimento da realidade da população brasileira e suas desigualdades no Brasil, gera, inclusive, falta de políticas públicas e assistências sociais. Reforça e concretiza projetos contra a vida.
Se não há atenção e criação de políticas públicas que possam garantir o direito ao alimento diário das populações, reconhecimento das(os) pequenas(os) agricultoras(es) e a potencialização de seus trabalhos, garantia de empregos e meios econômicos; há, sem dúvidas, negação pela vida dessas populações. Há aval para fome e para morte. Para muitas pessoas, a fome pode ser considerada silenciosa, já que não se atira em alguém para matar de fome, não se lançam bombas em milhares de pessoas para matá-las de fome. E talvez seja esse o ponto central para entendermos o quão urgente esse assunto é, pois não é nada silencioso para quem tem fome. Como já disse Carolina Maria de Jesus: “Quem vive, precisa comer”.
Referências bibliográficas
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios – Revista do PPGAV/EBA/UFRJ, nº 32, dezembro 2016.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: Diário de uma favelada. 10ª edição. São Paulo: Ática, 2014.
JESUS, Carolina Maria de. Diário de Bitita. São Paulo: Sesi-SP editora, 2014.
Olhe para a fome. Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil. Disponível em: http://olheparaafome.com.br/.
Foto de capa: Eva Elijas/Pexels.
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Cientista social e mestra em Sociologia, ambos pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Atualmente, faz Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Tem como experiência principal as pesquisas voltadas para as relações étnico-raciais, com foco em Educações antirracistas, Descolonização epistêmica e Afrocentricidade.