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Quem é que me diz quem eu sou?

No fim do ano passado, tentando pensar em retrospecto, eu senti como se houvesse algo de errado comigo. Pessoalmente, apesar de tudo, 2020 foi um ano muito leve, muito feliz. Parecia não ser possível eu estar bem e feliz em um ano tão pesado, sofrido, carregado de dor, luto e uma série de outros afetos mal elaborados. Mas foi isso. 2020, para mim, foi com certeza o meu melhor ano desde, pelo menos, 2012.

Não que ele todo tenha sido um mar de rosas. Não foi. Passou longe disso. Algumas mudanças trouxeram muita instabilidade. Passei por duas ou três crises pesadas de depressão e ansiedade, estive em lugares de muita angústia e de sofrimento muito profundo. Fora das crises mais cruéis, também tive pequenos desvios que me fizeram conviver por alguns meses com sintomas como sono desregulado e desânimo generalizado.

Contudo, acho que foi tentando responder uma pergunta central das minhas angústias que eu encontrei um caminho que me parecia melhor. Quem sou eu? Em vários momentos de crise, essa era a pergunta que mais me doía. Por muito tempo (não só nessas crises da pandemia, mas na minha vida mesmo), eu tive muita dificuldade para saber quem eu era sem depender da mediação feita pela percepção dos outros. Isso representa um problema que é muito sério: eu sou o que eu sou ou eu sou o que dizem de mim?

Muitas vezes a gente erra. A gente vacila. A gente falha muito sério com algumas pessoas. Para algumas pessoas, a gente é muito ruim. Para outras, que tiveram contato com esse discurso sobre nós, a gente também vai ser visto como uma pessoa muito ruim. Mas a questão é… isso dá conta do que a gente é de fato? Como saber quem somos? E como significar nossa vida para além desse lugar de culpa?

Já me causou muita angústia uma necessidade que eu tinha (e que talvez no fundo ainda tenha) de ser percebido como uma pessoa legal, maravilhosa, gentil e bondosa por todo mundo. A ideia de alguém não gostar de mim ou me achar uma pessoa ruim, mesmo por causa de erros meus e de coisas que eram de minha responsabilidade, era muito penosa para mim. Era realmente bastante sofrido.

Esses dias, conversando com a pretinha com quem me relaciono hoje, a gente estava falando sobre isso e ela fez um raciocínio que eu achei incrível. Ela falou sobre como às vezes a gente se recusa a aceitar que fomos pessoas ruins para alguém. E que essa dor, essa angústia de querer ser percebido de outra forma, no fundo é a gente tentando buscar no outro um perdão que a gente não consegue dar a si mesmo. Talvez isso ocorra porque, de alguma forma, a gente acha que depende desse outro para se sentir bem consigo mesmo. No fim das contas, ela concluiu, é a gente esperando que o outro diga que a gente é uma boa pessoa porque a gente não tem coragem de (ou acha que não pode) fazer isso sozinho. É, enfim, a gente dependendo da validação alheia para conseguir saber quem somos nós.

Um elemento central de um processo terapêutico (o Paulo vai me corrigir se eu estiver errado) é o trabalho com a capacidade de autodeterminação. E isso é, em parte, uma decorrência do processo de pesquisa e investigação de si mesmo — aquilo que a gente chama de autoconhecimento. Responder à pergunta do “quem eu sou?” sem depender do discurso do outro para isso requer que a gente se conheça primeiro; e se conhecer dá trabalho, é custoso, demora. Se conhecer, inclusive, passa também pela admissão dos próprios erros e pelo reconhecimento de partes você quer esconder. Ao invés de esconder, que tal aceitar que ela existe e trabalhar a partir daí para ver como é possível lidar com isso de uma maneira menos problemática?

Nesse caminho, entender os nossos afetos (tanto no sentido do que/como sentimos quanto no sentido daquilo que mexe com a gente) parece fundamental. É sobre entender o que sentimos, como sentimos, quando sentimos e como são os nossos processos para lidar com esses sentimentos. Citando um vídeo que assisti esses dias: “antes de entender quem você é, entenda como você se sente”.

2020 foi um ano em que muita coisa boa aconteceu na minha vida. Ter retomado a terapia certamente foi uma das melhores. No meio desse corre maluco de tentar construir minhas próprias significações, eu fui percebendo que muitas das narrativas que eu encontrava para falar de mim e da minha vida eram, na verdade, emprestadas de outras pessoas. Fui percebendo também que eu tendia a dar mais peso àquelas que me percebiam de maneira negativa — cada uma com seus motivos.

Quando passei a levar a sério a coisa de me entender, entender as coisas que sinto e escrever, a partir de como eu percebo tudo dentro de mim e à minha volta, minhas próprias narrativas, outras coisas foram aparecendo. Eu me dei conta, por exemplo, de como algumas percepções cruéis que eu tinha sobre mim mesmo passavam pelo racismo. Olhar para mim a partir do olhar do outro era, com frequência, olhar para mim com um olhar desumanizador.

Devagarinho, fui tentando me desvincular disso. Na verdade, ainda estou e provavelmente continuarei nesse movimento até o fim da minha existência neste plano. As amizades que pude fazer no ano passado foram fundamentais para isso (um dia ainda falo sobre isso em alguma coluna). As trocas que pude fazer com outras pessoas negras me permitiram enxergar outras possibilidades de sentir e de dar sentido.

O que quero dizer com tudo isso é que grande parte das coisas boas que pude viver em 2020 é consequência do entendimento dos meus afetos e dos meus desejos. Foi compreendendo e respeitando o que sinto que pude construir encontros mais interessantes e sinceros comigo mesmo e com outras pessoas. Foi me conhecendo e buscando me entender — das qualidades aos defeitos, dos acertos aos erros — que eu pude produzir algum tipo de mudança. Foi fácil? Não foi. Doeu? Muito. Mas o caminho que pode ser trilhado a partir daí é muito melhor.

Este texto não foi nada além de uma partilha de algo muito pessoal. Esta é a sétima versão do texto, que mudou um pouco a cada parágrafo escrito e agora já tá bem distante do que eu tinha idealizado dias atrás. 2020 me trouxe muita mudança — na vida, no campo relacional, em mim mesmo, no universo ao meu redor — e isso foi muito bom. Espero que em 2021 a gente consiga se dispor a aprender mais de si e que, assim, a gente possa escrever nossos próprios caminhos e preenchê-los com encontros melhores, mais significativos. Se não der certo, tudo bem. Acontece. Tenta de novo. Falha de novo. Falha melhor.

Foto de capa: Dimitri Houtteman/Unsplash.

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