O ano era 2019. No bairro Antônio Bezerra, em Fortaleza (CE), um grupo de jovens negros (no qual eu me incluía) se reunia no alpendre de uma casa. A casa era ampla, com uma entrada que parecia um quintal ou um jardim. Um pequeno ateliê à esquerda, algumas aquarelas secando e outros objetos decorativos davam ainda mais cor e vida ao ambiente. O calor de Fortaleza era constantemente interrompido pela brisa fresca que balançava os coqueiros próximos.
Nós estávamos ali para falar de um sonho. E conversamos também sobre muitos outros. Em um dado momento, a responsável por reunir essa gente toda falou do desejo de criar um amplificador de vozes silenciadas – um portal de mídia cuja missão seria reportar o mundo visto pelas lentes da população negra nordestina.
Rapidamente, sugeriu a cada um dos presentes uma área de atuação e uma produção testual (desculpa, não consegui resistir ao trocadilho, mas eu me referi a teste mesmo). Quase como que um desafio intelectual – pelo menos foi assim que encarei.
Saí dali com a responsabilidade de ter uma ideia de tema para um texto, achá-la suficientemente interessante, forçar-me a cometer o dito texto e ainda ser capaz de me convencer, ao final, de que o texto teria mesmo ficado bom. Parecia-me um baita desafio. Não sei se essa também foi a mesma impressão dos outros.
De todo modo, estava plantada a semente. Cada um ali saiu desse encontro com uma missão para ajudar esse sonho a tomar forma na vida real. Mais ou menos um ano depois, em julho de 2020, a semente brotou e nasceu o Site Negrê: o primeiro portal de mídia negra nordestina!
Significados
Certa vez, na faculdade, uma amiga estudante de Design me contou sobre uma aula que teve na disciplina de Semiótica. Ela disse que a professora pediu que cada um dos alunos levasse para a aula um objeto pessoal importante.
Apareceu de tudo: lego, boné, boneco de pelúcia do Snoopy, chaveiro, caneca… enfim, todo tipo de coisa. O desafio era que os alunos, simplesmente olhando para os objetos dos seus colegas, tentassem atribuir vários sentidos possíveis na intenção de desvendar o significado que cada objeto tinha para o seu respectivo dono.
Todos erraram, invariavelmente. Ninguém conseguia sequer se aproximar do significado que o dono atribuía ao objeto. A lição da aula era justamente essa: é impossível saber tudo o que uma coisa ou uma palavra pode significar – toda definição é limitada e limitante.
Falar só “portal de mídia” é limitado
É curioso pensar sobre o Negrê sendo alguém que, de algum jeito, participou do seu nascimento. Com o perdão do apelo à Semiótica, mas eu sempre tenho a impressão de que falar do Negrê como um “portal de mídia” limita profundamente a compreensão dos significados que o Negrê pode carregar.
Entre 2019 e 2020, o Negrê foi, para mim, ao mesmo tempo uma ideia, um sonho e, como descrevi anteriormente, um desafio intelectual. A partir do seu nascimento até mais ou menos o final de 2021, o Negrê assume uma miríade de significados.
Foi um lugar onde eu exercitei intensamente minha escrita e minha capacidade de refletir sobre o mundo. Foi um lugar que me ofereceu amizades que me ajudaram a suportar a pandemia da Covid-19. Foi um espaço fundamental para que eu conseguisse organizar a gigantesca quantidade de coisas que tinha para pensar nesse mesmo período.
Não é exagero dizer que o Negrê foi garantidor de algum grau de sanidade durante esse período difícil – e estou convencido de que não sou o único a pensar assim. Por isso, a frieza do termo “portal de mídia” não parece dar conta da realidade. O Negrê é muito mais que isso. E muito mais que muitas outras coisas para outras pessoas que também fizeram dele uma espécie de casa.
O Negrê como coletividade
Peço desculpas a você, leitor ou leitora, em caso de a leitura ter ficado um tanto quanto confusa. A ideia original deste texto se pretendia muito mais organizada. A ideia era basicamente fazer uma espécie de balanço ou relato histórico dos cinco anos do Negrê (seis, contando com a reunião de 2019) com uma pitada da minha visão particular – um misto de colunas e Arquivo Negrê.

Na última sexta-feira, 25 de julho, porém, a Larissa convocou uma reunião no Sindicato dos Jornalistas (Sindjorce) para celebrar os cinco anos do portal e falar um pouco sobre o momento presente do Negrê. Durante essa cerimônia, não consegui não retornar a 2019 o tempo todo.
O momento pareceu uma máquina do tempo na minha cabeça. Larissa falou muito sobre aquilo que o Negrê representa para ela e foi muito enfática ao afirmar que o Negrê é de todos que o compõem. Foi isso o que me fez decidir mudar o texto para uma coletânea de sensações e impressões completamente individuais, falando do Negrê, que é meu também.
Embora a vida tenha me distanciado um bocado das atividades no portal, constantemente sou lembrado de que ainda faço parte dele. Assim como eu, várias pessoas possuem seu próprio leque de significados atribuídos ao Negrê. O Negrê é, portanto, muito mais que um portal de mídia. É comunidade, é cultura, é partilha, é manifesto.
Parabéns pelos 5 anos, Negrê. Que venham mais cinco. E muito obrigado!
Foto de capa: Unsplash.
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Historiador pela Universidade Federal do Ceará (UFC), atuando como professor de História. Tem experiência com Patrimônio Histórico e Cultural (SECULTFOR) e estuda trauma em literatura de testemunho na Ditadura Civil-Militar, racismo ambiental e necropolítica. Gosta de música, café e outras artes, tem interesse em temas relacionados à política e cultura e uma paixão inexplicável por aviões.