Hoje, eu estava pensando sobre o que falar sobre Salvador, Bahia ou Nordeste. O primeiro pensamento que veio na minha cabeça foi falar sobre como é difícil ser um homem preto e nordestino. Relatar sobre ter uma das polícias que mais mata no país, sobre a xenofobia vinda principalmente do eixo Sul e Sudeste, ou até sobre o porquê do trabalho em situação análoga à escravidão é mais comum entre os homens negros nordestinos. Mas lembrei que além de tragédia e dor, somos potência, afeto e cuidado.
Sempre me chamou atenção a ideia quase unânime de que o Nordeste é acolhedor, que as pessoas são animadas e afetuosas. Mas quando se trata do homem negro, ainda permanece o estereótipo do homem da roça, do sertão e do cangaço. Aquele homem bruto, cabra macho, viril e que resolve tudo na base da agressividade com a peixeira na mão. Considero que esse revestimento masculino, em alguma medida, se apresentou como um modelo de sobrevivência a uma sociedade extremamente violenta, dura e perversa com homens pretos.
Às vezes, fico pensando sobre a pressão de ser homem preto em uma sociedade que quer nos ver na vala, na prisão ou nas malas dos carros da polícia. É duro pensar que meu avô passava o maior tempo na estrada, fazendo viagens de caminhão para garantir o sustento de 12 pessoas. Lembro de um dia em que ele me contou que às vezes o valor a ser pago era muito baixo, que se sentia humilhado por aceitar aquele valor, mas que não podia negar, pois necessitava daquele pouco dinheiro.
Quando penso nas histórias do meu falecido avô eu me questiono: Como poderia cobrar a ele um afeto carinhoso, palavras de acolhimento e abraços apertados? A violência do sub-emprego, da sobrevivência e do trabalho precoce também brutaliza nossos corpos, cria um revestimento duro e rígido pautado na ideia da necessidade de prover a família. Mesmo que isso custe o uso abusivo de substâncias psicoativas, a morte subjetiva e a solidão. A brutalização do homem negro e a violência são métodos de desumanizar nossos corpos, para que assim nos tornemos o homem preto violento, sem amor, sem referência de paternidade presente, o que não sabe amar, o macho escroto etc.
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Ainda hoje pergunto sobre o porquê da dificuldade que tenho em desenvolver uma amizade mais profunda, acolhedora e afetuosa com outros homens negros. Ainda não encontrei uma resposta, mas sinto que ainda estou preso ao que fizeram acreditar sobre os homens negros. Aos poucos, venho percebendo que tenho me desvencilhado desse homem preto construído apenas na violência, competição e na tragédia, tenho me conectado a partir de outros elementos, a partir da ancestralidade.
Esse ano, eu me vi criando um grupo chamado “Afetos nordestinos”, juntamente com Gabriel Cabral e Michael Rizzi, que são de Fortaleza (CE) e também fazem parte do Negrê. Pela conexão que estávamos construindo através do portal, decidimos fazer um grupo nosso para falar sobre nós, sobre música, história e temas que nos interessava. Engraçado que já ali e conseguia ver um carinho e desejo de troca que pouco tinha experenciado nas relações com outros homens.
Durante a dinâmica do grupo, fomos percebendo que também estávamos ali para falar sobre a experiência de ser homem preto no Nordeste, sobre nossos medos, nossas inseguranças e nossas vulnerabilidades. Conversamos sobre o que nos angustia, sobre o que nos faz potência e isso tem sido uma experiência de auto-amor e generosidade incrível. Através de Gabriel Cabral e Michael Rizzi, eu vejo que o amor preto é também amar outros homens pretos, é compreender que por mais que essa estrutura racista e patriarcal queira nos ver embrutecidos, somos água que corre. Seguindo um caminho que ainda não conhecemos, um caminho nebuloso, mas seguimos juntos, com a força e os cuidados Oboró. Não estamos ali tentando agradar outras pessoas ou por uma exigência política ou ativista, estamos ali apenas por ser e por compreender a força das afetividades entre nós.
Quando construo um laço de afeto e cuidado com outros homens pretos, sinto que estou honrando meu avô e outros homens que precisaram se utilizar do embrutecimento como estratégia para continuarem vivos. A sensação que tenho é de romper com o discurso do colonizador sobre meu corpo, e a partir daí, construir outras possibilidades de ser homem e de construir afetividades entre homens e com a comunidade. Obrigado por estarem juntos comigo nessa, amigos, eu amo vocês e o que conseguimos fazer de nós.
Foto de capa: Ketut Subiyanto/Pexels.
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Formado em Psicologia e Especialista em Saúde Mental e Atenção Básica pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). É pós-graduado na especialização em Direito Humanos, Saúde e Racismos pela Fiocruz. Homem cis preto de Salvador (BA) que gosta de compor histórias e sentimentos. Já atuou profissionalmente na política de assistência social junto à população em situação de rua, na área da saúde mental, clínica psicológica e garantia dos direitos da criança e adolescente em contexto de vulnerabilidade. Escreve e se interessa por temas relacionados à saúde mental da população negra, masculinidades negras, relações não-monogâmicas, relações raciais e política.