Definitivamente não começou em 2017. É o que entendo quando me perguntam sobre como conheci o Afrofuturismo. Naquele dia, eu estava chateada com uma dessas obras de ficção científica europeia e decidi buscar no google: black writers, sci fi. A primeira escritora que me apareceu foi Octavia Butler. Comecei a clicar em vários links sobre ela até que percebi que a palavra Afrofuturism se repetia. Iniciei a leitura de Kindred (1979); seu livro mais famoso, ainda em inglês, pra minha sorte o livro foi lançado no mesmo ano aqui no Brasil.
Foi após essa leitura que decidi mudar meu tema de pesquisa do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em Letras-Inglês. Antes, eu iria pesquisar a desconstrução da identidade negra no livro O olho mais azul (1970), de Toni Morrison; logo decidi que iria trabalhar o mesmo tema, mas agora em uma personagem que havia voltado para o passado. Esse tema ainda paira sobre minha vida acadêmica, pois esse mês irei defender minha dissertação do mestrado sobre dois livros afrofuturistas e Kindred é um deles.
Mas não foi em 2017 que começou. Falo disso, inclusive, na dissertação, para justificar o motivo de estudar o Afrofuturismo. Cresci sendo leitora de fantasia e ficção científica, algo que ousei dizer no meu texto acadêmico foi que ter sido uma leitora de ficção científica foi como crescer sem espelho. Eu escrevia cenas de livros me colocando ali, só para existir. Esse ato sempre me parecia errado, mas eu continuei até começar a escrever as minhas próprias histórias de fantasia (ainda não publicadas) com personagens parecidos comigo e com os demais costumes do povo daqui. Foi apenas quando conheci o Afrofuturismo que olhei pra mim mesma e entendi que nunca foi um erro e sim uma libertação.
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O que pulsa e movimenta meu ser
O Afrofuturismo já pulsava em mim nas minhas insatisfações cotidianas e literárias, mas eu ainda não tinha me permitido agir, simplesmente porque não tinha ninguém para me inspirar. Como eu queria ter lido as fantasias afrofuturistas na minha adolescência, teria sido mais fortalecedor de enfrentar a vida. Por isso, decidi que não poderia deixar pessoas como eu crescerem sem espelho também. Minha literatura, como os meus contos ou a minha novela afrofuturista são a minha extensão criativa, mas o meu trabalho principal com o Afrofuturismo é sobre movimento.
O movimento afrofuturista no Brasil deve ser sobre transformação e organização para além de produtos artísticos que circularão nas mesmas esferas. A falta de descentralização e ausência de reconhecimento das diversas perspectivas dentro do movimento afrofuturista podem resultar em consequências negativas. E, na perpetuação, mesmo sem intenção, de estereótipos.
A centralização do movimento em torno de determinadas figuras ou grupos pode levar à exclusão e marginalização de outros indivíduos e comunidades que dispõem de diferentes contribuições para oferecer. Isso cria uma dinâmica desigual e já conhecida. Não reconhecer diferentes perspectivas dentro do Afrofuturismo pode resultar em uma representação incompleta e distorcida da experiência negra, perpetuando estereótipos e reforçando narrativas dominantes que não refletem a realidade das comunidades afrodescendentes em um país de extensão continental como é o Brasil. Por isso, o nome do meu primeiro projeto: Territórios Afrofuturistas.
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Projetos pelo Nordeste
Apoiado pela Secretaria de Cultura do Ceará por meio da Lei Aldir Blanc, o projeto contou com nove oficinas online sobre Afrofuturismo, ficção especulativa, sertãopunk e escrita criativa, resultando na primeira antologia apenas com autores cearenses sobre o tema. O objetivo principal do projeto foi fortalecer as identidades afrocearenses e, em segundo plano, estimular uma valorização dos nossos territórios como também válidos de fabulação. Ao percebermos um impacto muito maior do que esperávamos, nossa antologia começou a ser lida em escolas de todo o Estado do Ceará e recebemos feedback de todo o Brasil sobre o e-book.
Mas não parou por aí, uma das melhores respostas ao nosso trabalho foi ver outros projetos nascendo. Vou citar alguns com o apoio de professores de escolas da região do Sertão Central do Ceará: “Eu Conheço Uzomi: O Afrofuturismo na Literatura do Sertão do Ceará”, “Sertão Afrofuturista: Especulações na obra EU CONHEÇO UZOMI, de Kinaya Black” e “Afrofuturismo em Reencontros, de Lucas Matinada”, um dos contos da antologia. Projetos de alunos que estão literalmente no sertão, vivendo a vida do campo, em cidades com menos de 30 mil habitantes, mas pensando no futuro.
Cartaz do projeto Territórios Afrofuturistas: novas narrativas para o sertão. Arte: Jason Felipe e Kinaya Black
Desde 2020, venho desenvolvendo esses projetos; o último, voltado exclusivamente para alunos do ensino médio da rede pública, me fez encarar a triste realidade do não cumprimento da lei n° 10.639 de 2003. A crise de identidade que caminha pela vergonha de suas características físicas ou o lugar onde moram é gritante no ambiente escolar; o que muitas vezes é reforçado pelos próprios professores que não compreendem a cultura como pluralidade e fluxo. A experiência dos alunos apenas por sentirem que serão ouvidos durante o projeto já o torna necessário de realizar. Ninguém ouve suas vozes e seus sonhos como o Afrofuturismo.
Assim como aqui, a consciência de transformação social por meio do Afrofuturismo se espalhou pela Região Nordeste. Mateus Fadigas, escritor e pesquisador do Afrofuturismo na área das Ciências Biológicas e Educação também desenvolve projetos no Estado da Bahia. Sua pesquisa teórica que propunha o uso do Afrofuturismo como plataforma para estimular o interesse de estudantes negras(es/os) pela ciência se transformou em outros projetos; segundo ele, em “uma pesquisa de doutorado e um projeto escolar que recebeu financiamento do Estado da Bahia para acontecer. Também produzimos em parceria com professores e estudantes da minha escola, uma revista digital com o tema Afrofuturismo, com a proposta de servir como material didático para tratar das relações étnico-raciais em sala de aula.”.
Além disso, Mateus conta que já foi convidado a falar do movimento algumas vezes em ambientes escolares e o que viu no rosto dos estudantes foi esperança. Ele acredita que a grande potência do Afrofuturismo é fazer renascer a esperança no coração de meninas e meninos negras(es/os). E que esses projetos têm contribuído para levar discussões sobre questões raciais às situações e aos lugares onde elas normalmente não chegariam.
Seja com ações online, em escolas ou na pesquisa, como a CIA Afrofuturista, grupo também baiano, estamos buscando que as novas gerações cresçam amando sua negritude e reconhecendo seu território como digno. A porta de entrada que a literatura afrofuturista foi para nós permitiu que construíssemos abrigos para os nossos.
Esses exemplos que trago aqui são apenas um vislumbre de como o Nordeste tem encarado e trabalhado o Afrofuturismo e de forma coletiva para que assim possamos crescer juntos e transformar nossas realidades.
Referências
ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural?. Belo Horizonte-MG: Editora Letramento, 2018.
HALL. Stuart. Identidade cultural e diáspora. Revista do IPHAN, Ministério da Cultura, v. 24, p. 68-75, 1996.
SÁ, Alan de. Um ano de sertãopunk: o que mudou até aqui?. 2020.
NOGUEIRA, Renato. Afroperspectivas Filosóficas para a sala de aula: possibilidades para o Ensino de Filosofia contemplar as Leis 10.639/03 e 11645/08 na Formação Docente, no Livro Didático e no Ensino Médio. Projeto, 2014.
WOMACK, Ytasha. Afrofuturism: The world of black sci-fi and fantasy Culture. Chicago: Lawrence Hill Books, 2013.
*Esse texto é um artigo colaborativo escrito por Kinaya Black. Kinaya Black é o pseudônimo de Gisele Sousa Santos. Escritora e pesquisadora do Afrofuturismo na literatura e audiovisual. Mestranda em literatura comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). É também tradutora, roteirista e produtora de projetos culturais e literários desde 2015.
Foto de capa: Alan Avelino.
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