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Não existe Odoyá para quem não respeita Laroyé

A frase que intitula esse texto foi extraída da legenda de um vídeo do radialista e comunicador cajazeirense Dinho Júnior (@dinhojunior); no qual o referido satiriza as pessoas que usam a saudação Odoyá no dia 2 de fevereiro, referente a Iemanjá, porém dão “Deus é mais” a Laroyê, saudação referente ao orixá Exú. O vídeo foi visto ano passado por mim e quando uma festa/saudação/ritual/manifestação voltado à cultura de religiões que cultuam orixás ganha a proporção do que é o 2 de fevereiro em Salvador, há um esvaziamento de sentidos por parte de muitas pessoas.

Isso acontece porque, aquilo deixa de ser uma manifestação religiosa e também passa a ser festa, show, point, destino de viagem, atração turística, rolê, ponto de encontro, comércio e outras tantas coisas. E aí, quando entra dinheiro, o esvaziamento é necessário, para que se possa monetizar e explorar a data comemorativa e a figura de Iemanjá de todas as formas possíveis. Por isso, achei importante, provocado pelo vídeo de Dinho Júnior, trazer algumas questões sobre o tema.

Primeiro: é importante dizer que a festa de Iemanjá é, sobretudo, uma celebração religiosa voltada a religiões que cultuam orixá. Dito isso, é importante compreender que a ritualística e oferendas à rainha do mar tem como objetivos o agradecimento, a homenagem, os pedidos e a celebração deste orixá que protege as águas, os pescadores e não deixa faltar sustento para seus filhos.

Foto: Alexandre Saraiva Carniato/Pexels.

Segundo: é bom lembrar que Iemanjá é cultuada por religiões de matriz africana, e seu embranquecimento estético, ético e político é uma afronta a ancestralidade e cultura preta.

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Devido à proporção que essa manifestação tomou, o capital não poderia ficar de fora no que tange a mercantilização do orixá e da sua celebração. Por isso, antes, durante e depois da festa, há a venda de rosa branca e de presentes para Iemanjá por pessoas que não respeitam, discriminam e desconhecem o real sentido da celebração.

E não, não estou culpando as pessoas em vulnerabilizacão que assim o fazem, pois a luta pela sobrevivência e a busca pelo lucro dentro da lógica do capital age dessa forma, se aquilo dá dinheiro à galera está fazendo.

Lembro de quando trabalhava com população em situação de rua, passou um artesão onde trabalhava muito com búzios e dizia que candomblé era do demônio. É mais fácil: vender um colar de búzios pela estética e dizendo que significava prosperidade ou dizendo que era um elemento importante das religiões que cultuam orixá?

A lógica no 2 de fevereiro é bem parecida: de vender Iemanjá branca dá dinheiro. A galera tá fazendo, se vender presente para a rainha do mar dá dinheiro; assim se faz, se a celebração atrai turistas do Brasil todo, existem pacotes de viagem e, assim, por diante.

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Esvaziamento e sua problemática

O grande problema do esvaziamento de sentido nesta celebração religiosa é que existe o porquê das coisas; da alfazema, da data, das oferendas (que são chamadas de presente pra ficar mais palatável), da cor das roupas, da ritualística, de tudo!

Mas o que acontece é que muitas pessoas gritam Odoyá; usam branco, vão para a beira do mar, jogam as rosas brancas, e, na primeira oportunidade que tem, chutam um ebó arriado na rua, expressam seu racismo religioso aos praticantes de religiões que cultuam orixá e selecionam na cara de pau o orixá que deve ser lembrado/celebrado/cultuado e respeitado em detrimento de outros.

Foto: Alexandre Saraiva Carniato/Pexels.

O problema são os empresários e as pessoas endinheiradas que monetizam em cima de uma cultura que detestam. São os shows e eventos particulares para “Saudar a rainha do mar”, os grandes restaurantes que alugam mesas caríssimas e aprontam um cardápio em homenagem a Iemanjá, são as mídias televisivas que cobrem a celebração e demonizam as religiões que cultuam orixá no horário nobre. Essa é a grande questão!

A terceira e última questão é que, Iemanjá não é Nosssa Senhora dos Navegantes, nem nenhuma figura cristã. Essas correlações entre um orixá e um santo cristão foi construída como estratégia preta para que o negros e negras escravizados pudessem cultuar os orixás. Esse sincretismo religioso foi importante para manter as tradições de religiões de matriz africana vivas, mas hoje não nos serve mais. O candomblé (de origem Ketu), por exemplo, parte de outro ponto de vista ético e cosmológico, no qual nada tem relação com uma ética cristã.

Não existe essa ideia de santificação ligada a uma “pureza” espiritual, nem da lógica, nem da bondade. A ética do bem e do mal não serve ao candomblé, os orixás são o que são. Enquanto, nos escritos de Lucas 6, é dito que caso alguém bata em sua face, deve-se oferecer a outra, a gente está cantando Patacori Ogun que pode ser interpretada também por “corte o mal pela cabeça”. E, aqui, não quero fazer juízo de valor, mas apontar que os valores, a ética e os olhares são diferentes.

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Laroyé

É interessante que você não vê todo esse sincretismo quando se fala de Exú. Em uma breve pesquisa, eu vi que, dentro da lógica do sincretismo, quem representa esse orixá é Santo Antônio, mas confesso que nunca tinha ouvido ou acessado essa informação.

E, para mim fica, nítido o porquê; para muitos cristãos, Exú é visto como diabo, então não faria nenhum sentido correlacioná-lo com um santo católico. Fora que, eticamente falando, haveria diversas contradições, já que o orixá bebê, fuma e dança.

Não é possível selecionar os orixás que se deve celebrar a partir da sua proximidade com a ética cristã. Como falei antes, os orixás são o que são; não há a ideia de bondade ou maldade, e todos são fundamentais para quem cultua os orixás.

Por isso, não existe Odoyá sem Laroyê; sem atotô, sem Kaô Kabecilê, sem Êpa baba e todas as outras saudações que demonstra o respeito e o amor aos orixás.

Foto de capa: Martina Martinez/Pexels.

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