Enquanto psicólogo, tenho percebido que a psicoterapia tem ganhado espaço em diversos setores da sociedade. Tenho ouvido cada vez o assunto nas mídias sociais, nos grupos de família e na televisão. Percebo que o peso da palavra terapia ou psicoterapia nos dias de hoje tem soado mais suave e compreensível, muito diferente do que percebia no começo da minha graduação em 2011.
Nos dias de hoje, muitas pessoas compreendem que a psicoterapia é uma das diversas formas de cuidado, penso que isso também se deve a uma movimentação de psicólogas dispostas a construir uma psicologia e uma clínica que dialogue com as demandas sociais da população brasileira. Não se pode negar que o discurso de que terapia é só para quem é “louco” ainda persiste, juntamente com outros estigmas, questões socioeconômicas e de políticas públicas que dificultam o contato com a psicoterapia.
Apesar da maior circulação de informação sobre a psicoterapia, ainda vejo muitas pessoas utilizando a frase “Vá fazer terapia” com a intenção de ofender. Como se algum comportamento estivesse fora de um padrão aceitável estabelecido socialmente por uma “normalidade” e que isso precisasse ser tratado ou ajustado. E é nesse ponto que eu quero chegar: o que tem por trás desta frase que deve ser problematizado?
1. Geralmente, essa frase é usada a partir da ideia de um comportamento desajustado ou problemático no qual foi percebido no outro. Então, para que esse comportamento seja corrigido, a pessoa precisaria procurar a terapia (que aqui estou compreendendo como psicoterapia). Um dos problemas dessa leitura é não compreender que o processo de psicoterapia se dá principalmente, a partir da compreensão da necessidade que a pessoa sente em procurar este serviço. Ou seja, não cabe ao outro dizer se você precisa ou não, até porque provavelmente ela nem saiba como você se sente ou o que te motivaria a procurar uma terapia.
2. Um outro problema desta expressão é a ideia de adaptação e correção do sujeito a partir da intervenção psicoterápica. Por mais que a psicologia tenha participado de práticas com caráter eugenista e de ajustamento social no século X;, atualmente, o fazer ético na clínica se expressa (ou deveria se expressar) sobretudo na compreensão das diversas possibilidades de ser e existir no mundo (Como ratifica o Código de Ética Profissional do Psicólogo e da Psicóloga). Desse modo, reproduzir o discurso da correção e adaptação do sujeito através da expressão “Vá fazer terapia”, vai de encontro ao compromisso ético e político da clínica, e ao Código de Ética Profissional do Psicólogo.
3. Geralmente, quem diz que o outro precisa ser “tratado” faz no sentido de aproximá-lo a ideia da loucura, ou seja, alguém sem razão. Já que como o lugar da psicologia e psiquiatria ainda está ligado ao lugar da loucura, a ideia de buscar esses serviços coloca em questão a “sanidade” da pessoa. Lembro de uma vez em que um rapaz no Instagram veio falar que eu precisava de terapia, pois eu estava vendo racismo em tudo. O interessante foi que esse discurso veio depois de eu ter argumentado sobre como o racismo estrutura nossa sociedade e como isso impacta nossas vidas. Por isso, eu percebi que ele usou a expressão no sentido de deslegitimar minha argumentação, a partir da ideia da loucura.
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Eu realmente não consigo perceber uma preocupação com o outro ou vontade real de ajuda em quem usa a expressão “Vá fazer terapia”. Como pode existir cuidado sem processo de escuta do outro? Sem mesmo saber o que se está passando ou até se aquela pessoa deseja alguma intervenção nesse sentido? Se o princípio do processo terapêutico se dá pelo desejo de estar ali, como iniciar qualquer cuidado se não há desejo?
Penso que a busca de cuidado através da terapia não se impõe, se oferta. Diferente da maioria das abordagens médicas, que pressupõe uma intervenção unilateral a partir do saber inquestionável da medicina, a clínica psicológica propõe uma construção do encontro. E é nesse encontro que o trabalho terapêutico se faz. Vocês já pensaram em fazer terapia?
Notas
Obs: No texto, terapia tem o mesmo sentido de psicoterapia, pois entendo que na expressão “Vá fazer terapia” e em outras utilizações da palavra, as pessoas correlacionam o sentido. Mas é importante salientar, que de uma maneira geral, a teoria está ligada a diversas terapêuticas, como cromoterapia, aromaterapia e outras, já a psicoterapia está relacionada há uma terapêutica realizada por um profissional da psicologia.
Tenha acesso ao Código de Ética do Psicólogo e da Psicóloga aqui.
Foto de capa: Christina Morillo/Pexels.
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Psicólogo e Especialista em Saúde Mental e Atenção Básica pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). É pós-graduado na especialização em Direito Humanos, Saúde e Racismos pela Fiocruz. Homem cis preto de Salvador (BA) que gosta de compor histórias e sentimentos. Já atuou profissionalmente na política de assistência social junto à população em situação de rua, na área da saúde mental, clínica psicológica e garantia dos direitos da criança e adolescente em contexto de vulnerabilidade. Escreve e se interessa por temas relacionados à saúde mental da população negra, masculinidades negras, relações não-monogâmicas, relações raciais e política.