Com o ataque de supremacistas brancos ao Capitólio (EUA) no último dia 6 de janeiro, um amigo me lembrou de uma conversa que tivemos há um tempo sobre sororidade branca. Ainda que a definição da primeira palavra esteja voltada para união entre mulheres, refletimos sobre como, na realidade, ela pode ser compreendida como uma espécie de “empatia” entre pessoas brancas, que, independente, dos lugares sociais que ocupam, cumprem com um pacto de autoproteção.
Não é uma surpresa, mas é marcante observar cenas do ataque ao Capitólio em que policiais agem pacificamente ou até evitam os invasores. Não se trata aqui de uma cobrança por violência policial e nem interesse pelo desfecho da situação, mas um destaque para a demonstração de autoproteção que faz parte da realidade das pessoas brancas.
Uma gritante comparação de como a força militar é seletiva por ser paciente diante de supremacistas brancos que eu também poderia chamá-los de: os verdadeiros terroristas dos EUA. E ao mesmo tempo, utiliza todas as forças e violência gratuita contra a população negra, com ou sem manifestações políticas. O que nos faz reafirmar que, independente, das posições de poder, vemos que se o fortalecimento racial prevalece entre pessoas brancas, a empatia prevalece. Um privilégio branco.
Vi um comentário aleatório em uma rede social que apontava a existência de policiais negros no Capitólio, afirmando que nem todos eram brancos protegendo brancos. A grande questão é que diversas instituições de poder possuem mecanismos que mantém e reestruturam o racismo nas sociedades e usam pessoas negras como executoras de ações como essas. A força policial faz parte desse projeto e incluir pessoas negras não a torna menos racista, pois ela é formada tendo o racismo como base. É um sistema que privilegia pessoas brancas e está nas estruturas, nos imaginários e nas práticas sociais cotidianas que favorecem determinados grupos e desfavorecem outros.
Na televisão americana, ao comentar sobre o ataque, Joy-Ann Reid, 52, afirmou que “americanos brancos nunca têm medo da polícia, mesmo quando estão cometendo insurreição […] porque em suas mentes, eles são os donos do Capitólio, são os donos dos policiais, os policiais trabalham para eles […] eles são os donos da Casa Branca, eles são os donos desse país”. A autoestima e segurança branca se mostra inabalável, uma consciência de que se pode ter e fazer tudo.
Dentro da nossa realidade
Falando do Brasil e refletindo essa prática de autoproteção no dia a dia, ela está na proteção histórica ao autor branco que é considerado clássico na academia e mesmo diante de suas obras que reforçam o racismo estrutural, permanece sendo lido. Não com uma leitura crítica que demarque a presença do racismo em suas obras, mas como um clássico e grande contribuidor do pensamento social brasileiro.
Está na estudiosa branca considerada experiente nos estudos das questões raciais no Brasil, que mesmo ao publicar algo sarcástico e racista, segue aclamada pelo meio acadêmico. Cada espaço social que pessoas brancas estão inseridas as protegem ao seu modo e é assim que há manutenção do racismo cotidiano.
Está no sistema judiciário que aprisiona pessoas negras como uma limpeza social e procrastina em apresentar soluções de casos, como o do assassinato da vereadora negra Marielle Franco (1979-2018). Assim como procrastina a acusação de uma família rica e branca que colocou, por anos, uma mulher negra em condições de trabalho escravizado. Há seletividade, há um país que não pertence às pessoas pretas. E não é novidade.
Devemos dar crédito à grande raça branca, pois por mais que lutem entre si e traiam-se em seus negócios, quando se aproxima uma ameaça real que comprometa o futuro e o destino de sua raça, clamam por uma interrupção imediata. Não é assim com o Negro; o Negro não sabe quando e onde parar de se machucar. Repito que devemos organizar-nos como um povo, porque devemos seguir em frente, e aproveito esta oportunidade, ao reunir-se aqui de todas as partes do mundo, para soar esta nota de advertência.
Marcus Garvey
Diante dessa realidade, como pessoas negras, inevitavelmente acabamos refletindo e nos perguntando: e nós, como somos, enquanto povo? A estrutura social é de um tanto racista e devastadora, que consegue assegurar que pessoas negras estejam frequentemente em fogo cruzado, até mesmo umas contra as outras. E dá garantia e suporte para a consciência da empatia entre pessoas brancas.
Um sistema como esse terá como um de seus objetivos as desavenças entre a população preta, que vai da autodepreciação até a depreciação da própria raça, como já alertou Marcus Garvey (1887-1940). As pessoas brancas se protegem e garantem assim seus privilégios e seus lugares de poder, sua autonomia. Evidente que é importante que saibamos que estamos diariamente expostas(os/es) às diversas violências, mas essa violência não é fruto de nossa história, estamos em guerra, mas essa guerra não é nossa. Ainda assim, estar viva(o/e) e com o maior apoio possível de pessoas como nós, é uma forte possibilidade de sobrevivência, de vida. Há fortes estruturas sociais contra nós.
Foto de capa: Manuel Balce Ceneta/AP Photo/Picture Alliance.
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Cientista social e mestra em Sociologia, ambos pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Cursa o Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Tem como experiência principal as pesquisas voltadas para as relações étnico-raciais, com foco em Educações antirracistas, Descolonização epistêmica e Afrocentricidade.