Em Fortaleza, no Ceará, no dia sete de setembro de 1992, nascia uma menina cheia de sensibilidade e inspiração. Seu nome que lhe foi dado é Tamires, cuja infância foi muito permeada pelo contato com a natureza. “Essa questão de pertencer ao mesmo espaço torna com que você cresça junto daquele lugar. Então, aquele lugar vai se desenvolvendo e você também vai”, conta. Tamires Ferreira hoje é assistente social por formação e artista, artesã, aquarelista, poetisa, escritora… ah, são muitas palavras que a definem.
Crescida e criada dentro da mesma casa, ela lembra [com carinho] que na infância seu pai gostava de criar e inventar, o que foi um fator fundamental também para o seu processo de desenvolvimento. Seu pai, que trabalha como eletricista, gostava de aproveitar materiais que, geralmente, iriam para o lixo. E, foi a partir desses hábitos paternos que ela desenvolveu sua capacidade de criação.
“Lembro do meu pai criar e inventar, então aquilo também se tornou muito fundamental no meu processo de crescimento, porque eu sempre gostei de muito dessa questão da terra, das flores, do que era natural, por ter crescido num espaço onde eu tinha contato direto com a natureza”.
As sementes que haviam sido plantadas na sua infância em relação a poesia, a natureza, o puro e o sagrado, germinaram na elaboração de um ateliê, onde desenvolve suas pinturas em aquarela e confecciona brincos. “Tudo aquilo foi muito importante quando eu resolvi iniciar o ateliê”. O espaço veio como um novo meio de redescobrimento através da arte.
Suas pinturas são feitas em aquarelas e o que mais gosta de retratar são mulheres negras, devido a sua ligação com a questão racial. Além das pinturas, ela confecciona brincos com materiais de fácil acesso e que, geralmente, vão para o lixo. Esses materiais são retalhos de tecidos ressignificados em uma nova peça. Suas criações expandiram porque ela sentiu a urgência de fazer algo que a mulher pudesse usar. Foi aí que ela uniu as pinturas em aquarela nos brincos. E, cada brinco é uma obra única. “Você sai na rua com uma pintura, uma obra original, porque nenhum fica parecido com o outro”, assegura.
“O ateliê é isso, é esse espaço onde toda essa trajetória de vida vai criando essas vastidões, porque eu vejo cada detalhe desse crescimento dentro do ateliê e, principalmente, diante das diversidades que surgem, porque é um espaço onde eu me sinto plena. Eu acho que o ponto-chave é esse. Não é a questão de ter só um negócio ou de ter algo que renda dinheiro, mas é um espaço onde eu posso dar frutos. Então, cada peça que eu faço, pra mim é um pedaço e uma história que eu vou contando”.
O ateliê, batizado por ela como “Ateliê da Tamy”, passou a ser um espaço de prolongamento das suas descobertas. As descobertas de uma história que o tempo todo está florindo e se renovando. “Ele [o ateliê] veio de uma certeza muito grande, porque quando eu falo do ateliê é a certeza de quem eu sou, de qual é o meu lugar nesse mundo”, reconhece. E, esse lugar não é um lugar de inferioridade, mas um lugar onde a artesã pode ser sujeita da sua própria história.
Quando menina
Durante a infância, Tamires lembra que no quintal de sua casa, ela tinha um contato muito profundo com as flores, e que até hoje esse contato se reflete na escrita de suas poesias. Por ter sido uma criança muito criativa e, de certa forma, solitária, carregava consigo uma imaginação muito fértil. “Eu germinava o tempo inteiro. Então, eu criava mundos, situações e histórias sozinha e isso foi suficiente para que germinasse dentro de mim essa criatividade”, lembra.
Logo, um mundo de cores, tintas e poesias ia se fazendo na construção da Tamires criança que, segundo ela, ainda permanece. “Essa criança em contato profundo com o deslumbramento, que uma flor deslumbra, uma folha ao vento, essa questão do natural sempre impactando na poesia escrita”, destaca.
Na fase da adolescência, a pequena poetisa começou a se descobrir enquanto mulher negra e afirma que vivenciou situações em que sentiu o racismo na própria pele. “A fase da adolescência é muito importante nesse processo de descobrimento porque que eu comecei a realmente sentir essa questão do racismo na minha trajetória de vida, principalmente porque o racismo se constrói na relação com o outro”.
Tamires pontua que, em sua adolescência, exigências, como ser bonita, ter um namorado e sentir-se desejada, começaram a interferir na sua autoestima, considerada por ela como fragmentada. Até os seus 18 anos, ela se considerava morena e tentava se comparar com as suas amigas, esteticamente brancas, que eram consideradas bonitas pelos rapazes. “Elas eram sempre as que mais se destacavam. Desde pequena, desde que eu entrei na escola, o único caminho que eu conseguia me destacar era no caminho da educação”, recorda. Por acreditar que não era agradável aos olhos masculinos, a moça procurava ser boa na escola.
Sempre autodidata por buscar o conhecimento para além do que a escola e do que os professores ofereciam, ela lia muito. O mundo da imaginação que havia criado para se aventurar na infância agora era um espaço real de entrada na adolescência, pois nessa fase ela começou o seu processo de criação das poesias. Aos 15 anos, havia começado a escrever os seus primeiros poemas, e lembra quando chegou para sua mãe, falando que queria ser poeta. “Falei pra ela e ela disse que isso não dava pão, o que marcou muito a minha vida, porque naquele momento a poesia se tornou mais um campo de escape do que propriamente algo que eu quisesse seguir como profissão, fazer um curso de Letras, ou algo assim”.
A adolescente negra no espelho
Durante a adolescência e até os seus 21 anos, ela não havia vivido nenhum tipo de relação amorosa. Na época, sentia-se culpada por nunca ter tido um namorado, mesmo sendo inteligente, agradável e criativa. Mas, atualmente, considera que o fato de ser negra implicou bastante na sua condição. “Hoje, eu entendo profundamente que a questão de ser negra era um fator primordial. E isso é tão forte porque quando eu olhava pra mim no espelho ou em qualquer canto, eu não me achava bonita, não me achava bonita mesmo”, enfatiza.
Durante o ensino médio, ela lembra que teve seu primeiro contato com a questão racial após ler um texto que falava sobre segregação racial e cotas, indicado por um professor de Sociologia. “Foi muito forte aquilo porque, até então, na minha cabeça, essa questão do racismo não existia no Brasil”, destaca. Quando terminou os estudos na escola, conseguiu ingressar no curso de Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).
A semente [negritude] que havia sido plantada no colégio começou a germinar dentro da universidade quando Tamires começou a participar de um grupo de pesquisa, o Núcleo de estudos e pesquisas em Afro-brasilidade (NuAfro), na época coordenado pela professora Zelma Madeira. Enquanto professora negra, Zelma era uma fonte de inspiração para Tamires, que via, no grupo, um caminho para encontrar respostas.
Discussões como racismo e empoderamento da mulher negra passaram a permear a consciência da estudante que foi se descobrindo e se redescobrindo enquanto negra na universidade. “Tudo na minha vida mudou completamente, tanto no ponto de vista da minha relação comigo mesma e com o outro. A partir do momento que eu me enxerguei como mulher negra, a minha pele, meu cabelo, a minha boca grande, o meu nariz largo… todas essas coisas começaram a ter um significado”, destaca. O fato de ter feições negras não era um atributo desconexo, havia toda uma história escrita ali.
Após compreender sua própria história e entender como se deu o racismo no Brasil a partir das discussões acadêmicas, Tamires desconstruiu muitas questões. “A minha autoestima foi totalmente reconstruída, porque hoje eu me olho no espelho e não me vejo mais como um sujeito apartado, sem história. Hoje eu me vejo como um ser rico em significado. Cada parte da minha negritude compõe quem eu sou. Então, a partir das discussões que eu fazia no Nuafro e dentro do Serviço Social, muitas coisas foram desconstruídas”.
Uma das principais questões que Tamires enxergou nas discussões acadêmicas foi a questão das potencialidades. Consciente de sua história enquanto negra e de sua potencialidade, a poetisa descobriu uma nova Tamires. “Aquilo que eu tinha dentro de mim foi potencializado e deu frutos”.
Foto de capa: Arquivo pessoal.
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Jornalista profissional (nº 4270/CE) preocupada com questões raciais, graduada pela Universidade de Fortaleza (Unifor). É Gestora de mídia e pessoas; Fundadora, Diretora Executiva (CEO) e Editora-chefe do Negrê, o primeiro portal de mídia negra nordestina do Brasil. É autora do livro-reportagem “Mutuê: relatos e vivências de racismo em Fortaleza” (2021). Em 2021, foi Coordenadora de Jornalismo da TV Unifor. Em 2022, foi indicada ao 16º Troféu Mulher Imprensa na categoria “Jornalista revelação – início de carreira”. Em 2023, foi indicada ao 17º Troféu Mulher Imprensa na categoria “Região Nordeste” e finalista no Prêmio + Admirados Jornalistas Negros e Negras da Imprensa Brasileira em 2023 e 2024. Soma experiências internacionais na África do Sul, Angola, Argentina e Estados Unidos.