Artigos

“Eu não sou parda!”

Atualizado às 12h50 do dia 14/09/2020

Decidida a tirar uma nova identidade (dado à situação do antigo documento), fui até o Vapt Vupt do bairro Antônio Bezerra, daqui de Fortaleza (CE). O processo era feito em um dos guichês do local, já que lá haviam várias instituições prestadoras de serviço para a população. Foi um dia inteiro para esse processo. Feito. Consegui e fui para casa. O documento ficou previsto para ser entregue no dia 27 de dezembro. A previsão. No mesmo dia em que eu fiz o documento, comentei com um grande amigo negro que me disse que nesse novo RG, eles preenchiam a informação “cor/raça”. Meu amigo especulou que poderiam ter me intitulado como “parda”. E eu comecei a pensar nisso também. E, confesso, me irritei, pois a atendente não me perguntou essa informação no ato do atendimento. E não era justo porque eu tenho o direito de me definir! Eu tenho direito de dizer quem eu sou porque era o meu documento!

Então, no dia 27 de dezembro, fui buscar o documento que estava pronto. Pedi a moça que verificasse no sistema o que colocaram sobre mim. E sem minha permissão, foi dito e feito. Eu havia sido posta como “parda”. Foi aí o momento em que eu fiquei bem irritada. Mas não fiz escândalo. Respirei para mudar o que estava posto. Perguntei, então, para a moça se era possível alterar a informação, mesmo sem ela aparecer impressa na cédula de identidade. Justifiquei que eu era negra e não parda! Ela me olhou dos pés à cabeça como quem tivesse procurando a minha negritude ou medir o grau da mesma ou medir a minha melanina. Ela olhou para mim como quem tivesse procurando à cor negra mais escura possível. Então, ela falou que não seria possível alterar porque era apenas uma informação no sistema. Não estava impressa na cédula. Que não ia me prejudicar caso eu tentasse algum concurso público por cotas raciais, pois o órgão não divulgaria a informação (errônea sobre mim, ao meu ver).

A moça disse ainda que se eu quisesse um documento novo com a informação correta (ao meu ver), eu ia ter que pagar novamente. O valor na época que eu paguei foi um pouco mais de R$ 50 reais. Pensei na possibilidade, mesmo que doesse ou fizesse falta no meu bolso. Mas resolvi pedir para falar com a supervisão. Fui até o guichê em que fui atendida no dia 11 de dezembro e falei com a atendente. Calma, embora irritada, disse que ela colocou a informação errada sobre a minha cor/raça. E perguntei o nome dela. Ela respondeu, um pouco insegura, mas respondeu. Logo depois, fui até a supervisão e expliquei o ocorrido.

No caminho, tive a ideia de pegar o celular e falar com uma amiga, também jornalista e negra como eu. Tentei ver se ela poderia me ajudar de alguma forma. Conversei com a supervisão e minha amiga deu um retorno. Foi agendado para que eu voltasse no dia 30 de dezembro e refizesse o documento com a informação correta sem custo adicional algum. Mas que eu tinha que escrever um documento, justificando a minha motivação para a alteração. Um documento em que eu ia justificar porque eu me considero negra. E aí, eu teria que sentar e pensar o que eu ia escrever sobre mim, sobre meus ancestrais próximos (vovô) e aqueles mais distantes, os quais desconheço história, lugar e etnia… infelizmente. Mas seria uma experiência inédita.  

Mesmo com o gasto de energia e o cansaço, insisti nessa história porque é a minha história! É o meu nome! É a minha identidade. E, por trás disso, há outras pessoas. Negras e ancestrais. E que devem ser respeitadas! Por trás de mim, estão os meus ancestrais. E eu não poderia deixar que nada os desrespeitassem mais do que eles já foram. Por anos e anos foi esse desrespeito. Mas, se agora dependesse de mim, não mais! Pois eu digo que passou um filme na cabeça… Lembrei do vovô Bel. Meu avô negro. A pessoa de pele mais escura na minha família. O indivíduo que puxa uma linhagem de uma ancestralidade africana na minha história de vida.

A história que ouço desde sempre: de que o vovô Bel é neto ou bisneto de uma mulher negra, que foi escravizada. Minha negritude, quem eu sou, começa aí. Na minha ancestralidade. No meu sangue. É, eu não podia deixar meu documento errado. É o meu nome. É a minha história. É parte do que sou. E um dos motivos que explico a mim mesma o fato de carregar meus ancestrais comigo. Eu não ando só. E exijo e luto por respeito na sociedade. Que ela entenda isso. Que eu não sou parda e muito menos deixarei ser rotulada por esse termo embranquecedor. Eu não sou parda!

Bem, será preciso escrever outro artigo para explicarmos a crítica do povo preto com o termo “pardo(a)” no Brasil…

Foto de capa: Reprodução.

Confira as versões traduzidas para o Inglês do artigo aqui e aqui.

Compartilhe: