Na sexta-feira passada, 14 de abril, pude assistir ao filme Medida Provisória (2020), que tocou em sentimentos que evito visitar. São aquelas feridas que sempre latejam, mas a gente procura desviar o foco pra não sentir a dor. Nesse filme, foi inevitável tocá-las. Penso que, muitas vezes, a arte é o canal pra que possamos dar de cara com a nossa subjetividade e os nossos sentimentos. Especialmente se for aqueles que evitamos; e que, por meio das telas, encontram um caminho para chegar até nós.
A proposta do longa-metragem me remeteu às ideias de Denise Ferreira da Silva (2019) quando, ao discorrer sobre a questão racial, a autora informa que todo o mundo como conhecemos hoje é fruto de uma riqueza gerada através da exploração de corpos negros. E afirma que, para que haja uma possibilidade de bem viver para esse povo, é necessário que haja a restauração do valor total que geraram. Sem esse valor, o capital não teria prosperado e é sob o qual ainda se sustenta, sendo necessária a implantação de outras arquiteturas jurídico-econômicas de retificação que só seriam possíveis através da destruição do mundo social como conhecemos.
O intuito dessa destruição não se assemelha com a proposta do filme, que segue um caminho totalmente extremo e prejudicial aos negros que vivem naquela realidade retratada: a imposição do retorno dos negros à África através de um decreto, que culminaria na destruição das vidas desses indivíduos no Brasil. O decreto é viabilizado por meio de uma atuação policial que persegue e prende negros que estão nas ruas, encaminhando-os forçadamente aos países da África, sendo que a polícia não pode invadir os domicílios. Desta forma, aqueles que possuem características negróides, tem como única alternativa se manter em casa.
Realidade distópica?
De fato, tanto a proposta do filme, quanto as ideias da autora Denise, parecem possíveis somente no âmbito da imaginação, não é mesmo? Pois bem, fui prestigiar o filme partindo da premissa de que se trataria de uma realidade distópica. Durante a trama, algumas cenas me chamaram atenção; observei negros sendo tratados como não pertencentes ao seu próprio país, pude ver Antônio (Alfred Enoch) ser questionado pelo seu carro quando foi visitar sua esposa no trabalho, assim como Capitú (Taís Araújo) refletindo sobre ter ou não um(a) filho(a) naquele contexto tão adverso.
Chorei com André (Seu Jorge) se pintando de branco ao sair de casa para conseguir ter acesso à água e comida, me reconfortei quando Capitú encontra um porto seguro em seus pares… um misto de sensações que fez com que me perguntasse se o que acompanhava na tela do cinema realmente se tratava de uma distopia.
Me lembrei das diversas vezes em que fui Capitú, em que fui André, em que fui Antônio… Das diversas vezes em que fui questionada sobre um bem ou cargo que possuía, ou quando me “pintei” de branca para me incluir na lógica capitalista apenas para garantir o básico à sobrevivência. Entre risos, choros e sentimentos de indignação, foi possível perceber as várias referências que a produção carrega.
Entre elas, me recordo de algo muito sutil, presente na fala de Isabel (Adriana Esteves) ao preferir o café preto durante um evento. Em outra cena, o Deputado escolhe o picolé sabor chocolate como a opção que mais agrada o seu consumo. Essas falas, que poderiam passar despercebidas no enredo das cenas e/ou outros diálogos, me fizeram lembrar de uma reflexão de Achille Mbembe (2018) quando discorre sobre a necropolítica.
Política de morte
A necropolítica é um conceito elaborado por ele e compreende a opressão sistemática de um povo, desde os navios negreiros, que se retroalimenta de acordo com a dinâmica social. É essa relação colonial que oscila, constantemente, entre o desejo de explorar esse “outro” inventado como racialmente inferior e a tentação de eliminá-lo.
A fala dos personagens, ao assumir preferências de produtos que remetem a uma associação ao negro, me fez pensar em quantas vezes nosso povo é valorizado como “coisa” ou instrumento de uma engrenagem. Não é difícil recordar de falas que exaltam a força ou a resistência física do trabalho de uma pessoa negra, mas esse mesmo povo é invisibilizado quando falamos de direitos ou de um “bem viver”. Afinal, como reflexo da reprodução da falsa ideia de democracia racial, para muitos nesse país, os negros nem existem: “Somos todos brasileiros, um povo miscigenado”.
Espaços de proteção
Destaco também os momentos que retratam as “afro-bancas”, espaços em que os negros se reuniam para se proteger, pensar em estratégias diante do contexto que viviam e fortaleciam sua identidade. Me fez recordar que podemos encontrar nos nossos pares espaços de acolhimento e segurança, remetendo às reflexões do sociólogo Clóvis Moura (1925-2003) e da historiadora Beatriz Nascimento (1942-1995).
Clóvis Moura (2014[1959]) opõe a história oficial, especialmente aquela contada nas escolas, apontando a resistência e luta dos escravizados nos quilombos. Inicialmente criados em resistência e a fim de fugir da escravidão, os quilombos eram os lugares da livre expressão cultural, religiosa e organizativa dos escravizados.
Vistos frequentemente como ameaça aos interesses da época, eram alvos de constante vigilância e repressão. Muitos deles foram destruídos, mas o autor aponta que mesmo posterior a destruição desses espaços, ocorria um “caso interessante de segregação espontânea, promovida pelas condições de insalubridade a que só os negros, parece, conseguem resistir […]” (MOURA, 2014[1959], p. 127). Ou seja, os quilombos extinguidos davam origem às comunidades. Portanto, temos que historicamente algumas classes colocadas como “à margem” ou periféricas eram classificadas como perigosas desde os tempos coloniais.
Essa perspectiva também é compartilhada por Beatriz Nascimento em falas para o documentário O Negro da senzala ao soul (1977), veiculado na TV Cultura de São Paulo (SP) naquele ano, quando a autora afirma que, na perspectiva da continuidade histórica, a organização que o quilombo significava não deixa de existir simplesmente porque deixa de existir a repressão, inclusive uma repressão armada. A autora aponta que existem regiões no Rio de Janeiro e na Bahia que eram antigos quilombos e hoje são periferias. Mais uma vez, me peguei refletindo se aquilo que estava sendo retratado no filme realmente rompia tão bruscamente com a realidade.
Sem mais spoilers, o final me inquietou, mas me relembrou sobre as tecnologias ancestrais de sobrevivência que podemos aplicar para circular e sobreviver nos diversos meios que nos inserimos: tecnologias de hackeamentos sociais como resgate de segurança. Reforço a importância dessa produção, por retratar a questão racial de uma forma que não é frequentemente retratada, pela inteligência do roteiro e por ser um filme brasileiro com grande número de pessoas negras na atuação e na produção. Que seja o primeiro de muitos a ganhar visibilidade, que nos abra caminhos, que possamos nos banhar da tinta branca que esse país nos impôs por tanto tempo, como André fez. E, parafraseando Antônio: “Que eles lidem, em todos os espaços, com o nosso talento e a nossa cor”.
Referências
SILVA, D. F. A dívida impagável. 2019. Disponível no link.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo, sp: n-1 edições, 2018.
MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala: Quilombos, Insurreições, Guerrilhas. São Paulo: Anita Garibaldi, 2014 [1959].
Foto de capa: Reprodução.
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Mulher-preta-cearense, filha de Maria do Carmo. Assistente Social e mestra em Sociologia, ambos pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). É pesquisadora e especialista em Legislação Social, Políticas Públicas e Trabalho Social (Pótere Social). Encantada pela escrita e movida a expressar mundos através das palavras. Curiosa e pesquisadora, principalmente, nos seguintes temas: juventudes, raça, arte, violência, sistema socioeducativo e questão urbana. Cursa o Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).