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A sua trajetória tem sustentado o seu discurso?

Durante esses dias, estive montando uma atividade para compartilhar com os novos estudantes do Quilombo Educacional Gbesa no espaço Ubuntu. A atividade tinha como proposta proporcionar uma conversa entre Beatriz Nascimento (1942-1995), Abdias do Nascimento (1914-2011) e Nego Bispo (1959-2023); sobre o que seria quilombo e sua articulação com a história negra africana, com organizações políticas e ouras temáticas.

Durante essa preparação, eu me deparei com uma fala de Nego Bispo que vem reverberando até agora em mim, em um vídeo do Youtube. Nego Bispo, ao questionar “Como contra colonizar?”, afirma que: “Um dos movimentos mais importantes para contra colonizar, é sair da teoria e priorizar a trajetória. Eu digo que a minha trajetória precisa sustentar o discurso, se não meu discurso não tem sentido”.

Quando ouvi essa frase, consegui dar vazão a um sentimento que não conseguia compreender muito bem o que era, mas quando ouvi a frase em questão, tudo confluiu. Já tem um tempo que tenho escutado e lido muitos discursos sem sentido, pois eles não corroboram com a trajetória daqueles e daquelas que estão discursando.

É verdade que, muitas vezes, não se dá para ter dimensão da trajetória daquela pessoa que escreveu um super texto no Instagram ou fez uma fala incrível em um vídeo. Porém, tem como ficar mais atento aos detalhes, pela forma como aquela pessoa responde aos comentários de quem pensa diferente dela, buscar mais informações sobre aquela pessoa, ler mais textos, assistir mais vídeos e até mesmo propor uma conversa com ela.

Compreendo que, mesmo com todo cuidado, não teremos certeza de que aquele discurso é confirmado na sua trajetória ou até mesmo na prática cotidiana (A não ser que seja alguém próximo de você ou da sua rede de amigos). No entanto, esses cuidados servirão para não cairmos nas armadilhas dos discursos “iluminados”, “cirúrgicos” e “necessários”. Ou então seguir alguém que em algum momento fará algo totalmente ao inverso daquilo que tem como discurso. E, na minha cabeça, já vieram algumas pessoas. Antes de compreender a relação entre discurso e trajetória, é importante nos questionarmos se estamos realmente preocupados na prática de quem discursa ou… o que vale por si só é aquilo que se fala?

Contradições

Eu lembro que, em um determinado dia, uma conhecida me mandou um texto de uma pessoa que produz um discurso bonito sobre masculinidades, mas que eu sabia que sua trajetória era repleta de contradições. Aqui eu não estou falando de alguém que foi violento, compreendeu a violência, se retratou e se responsabilizou por isso. Estou falando de alguém que, reiteradamente, debocha de mulheres negras, faz chacota, manda estudar e não considera discursos e produções relevantes cunhados por mulheres negras, considerando-as “mulheres negras embranquecidas”.

Quando li o texto, apontei alguns aspectos que descordava e falei que era uma pessoa que tinha uma prática contraria ao discurso e, por isso, o texto não tinha muito sentido para mim, era vazio! Lembro que essa colega ficou chateada pelas minhas discordâncias em relação ao que era abordado no texto e falou que não era porque a pessoa não praticava o que dizia que o seu texto não era válido.

Foto: Pixabay/Pexels.

Sem respaldo

Hoje, eu entendo porque os discursos sem respaldo na trajetória são validados por muitas pessoas, porque mais do que nunca hoje; vivemos na era da hipervalorização dos discursos, não precisa ser coerente nem praticar o que se diz, basta usar jargões e construir uma narrativa para que as pessoas acreditem naquilo. É só você dizer que é um policial que combate à criminalidade e aos policiais corruptos, forjar vídeos na internet e usar frases de efeito que, em pouco tempo, você pode virar o guardião da justiça. Mesmo que seus vídeos sejam forjados e que se tenha evidência de crimes como aliciamento infantil.

É só se autonomear de esquerda, socialista, anticolonial, militante aliada à luta antirracista e se manifestar contra às opressões sociais, que os espaços da grande mídia se abrem e a pessoa vira a consultora branca sobre questões da negritude. Mesmo que essa pessoa lucre vendendo livros sobre a violência contra o povo negro e acusa uma das maiores artistas negras da atualidade de apropriação da cultura africana, o espaço continuará lá, pois o que vale é o discurso, os textos e livros publicados.

Porém, percebo que a não perda desse espaço de porta-voz de algum assunto se faz para as pessoas brancas, pois, certamente, se algum preto, preta ou prete for pego em um discurso no qual a sua trajetória ou prática diária não sustente; essa pessoa certamente será cancelada, tanto na vida real quanto na virtual.

Prática e trajetória

A grande questão é que a prática, quando pensamos na militância e luta contra uma estrutura de opressão, muitas vezes não te trará likes, amplo prestígio midiático, possibilidade de escrever em grandes mídias e ter convites para publicar livros. A trajetória geralmente para quem está na luta e no enfrentamento diário é árdua, cansativa, pouco glamorosa, pouco reconhecida por muitos e nem sempre dá para ser registrada ou amplamente divulgada nos meios de comunicação. Muitas vezes, são as pequenas conquistas da luta contra as opressões e o compromisso pela luta coletiva que são combustíveis para continuar lutando, e não a quantidade de like ou “prestígio social” que aquela ação pode gerar.

Foto: Antoni Shkraba Produções/Pexels.

Diferente do que muitos pensam, não são capas de revista, livros publicados, colunas em grandes portais, publicidades com marcas milionárias e programas de TV que se faz uma trajetória; e sim todo o seu percurso nos espaços de luta que fizeram você chegar aonde está. Mas cada vez mais isso parece estar invertido, pois é comum ver pessoas sem trajetória sólida tendo espaços grandiosos para disputar a opinião pública, gente que começou em um grupo de adolescentes brancos endinheirados e revoltados com o país (que estava socialmente muito melhor que agora), pautando a política nacional na televisão.

O privilégio ao discurso

A grande parte dessas pessoas que fazendo do seu discurso o discurso em si mesmo, são brancas, pois na estrutura racista que vivemos, o discurso branco é mais complacente e carrega maior credibilidade. Um outro fator que pesa nessa abertura de espaço essas pessoas, é o interesse político de alguns portais em se ter uma opinião pouco aprofundada sobre temas importantes para a sociedade; a ideia é ter apenas uma opinião lacradora em que o retorno de audiência seja grande. Ao mesmo tempo, vejo pessoas pretas que estão ali na luta há anos, com trabalhos sólidos e incríveis, sem oportunidade para ocupar espaços que deveriam no meio da comunicação, da política e em áreas de gestão na política pública.

Querendo ou não, com a projeção das redes sociais e o crescimento do mercado dos discursos e opiniões (devido ao fervor do debate político, o crescimento de novas mídias e o mercado das Fake News), o nicho da comunicação acabou sendo uma possibilidade viável de ganho financeiro, principalmente para as pessoas que não eram dessa área. Mais uma vez, as pessoas pretas sendo preteridas dentro de um campo de trabalho, tendo que fazer dez vezes mais para que se tenha um mínimo de oportunidade.

Com isso, não quero dizer que o discurso e a fala não são importantes, mas que ela precisa vir legitimada pela trajetória, como afirma Nego Bispo. E que esse movimento de compreensão da trajetória como alicerce do discurso seja percebido como fundamental nas nossas trajetórias de luta e disputa da opinião pública.

Mais vale a trajetória do que o discurso

Nas minhas experiências e afetações recentes, tenho dado cada vez mais valor a trajetória e menos para o discurso, tenho percebido as pessoas que estão próximas, ´pessoas que admiro pela movimentação diária, pelos cuidados e pelas trocas. Pessoas que pude acompanhar parte da trajetória e que se mostram certas de que a luta, o cuidado e o amor precisam ser pautados pensando o coletivo, apesar do mundo a todo momento gritar: “Cada macaco no seu galho”, incentivando a individualidade.

Na verdade, eu cansei dessa autodenominação compulsória, de muitos títulos e pouca trajetória, de gente querendo ensinar o que não sabe, ou fazer um curso sobre algo aprendeu semana passada. Tipo aqueles coaches que te ensina a ser milionário, mas que tem um Honda Civic, 5 mil reais na conta e fotos da sua viagem a Buenos Aires (Argentina).

O cansaço que eu sinto acaba sendo afagado e acolhido por pessoas como Nego Bispo e tantos amigos e amigas da minha rede de afetos, que possuem trajetórias potentes e me fazem olhar pra dentro de mim. E quando me olho, tenho a tranquilidade que estou em um caminho que me enche de orgulho, por todos os aprendizados, erros, medos, atos de coragem e por ter mais perguntas do que respostas, pois como o próprio Nego Bispo falou, são as perguntas que ensinam, e assim sigo aprendendo.

Referências

Vídeo de Nego Bispo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gLo9ZNdgJxw.

Informações sobre o Quilombo Educacional Gbesa. Disponível em: https://www.instagram.com/quilomboeducacionalgbesa/

Foto de capa: Marta Ziółkowska/Pexels.

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