Atualizado às 13h45 do dia 15/03/2021
Um diário de bordo, um livro de autoconhecimento, um compilado de crônicas ou um registro sociológico e temporal de um Brasil que ainda precisa ser (re)conhecido. Não é pretensão: tudo isso é tematizado no romance Confissões de Viajante (sem grana), livro da escritora-viajante Manoela Ramos, lançado em 2018 e que já vendeu mais de 2 mil cópias físicas, e figurou na lista de mais vendidos da categoria de viagens da Amazon da América Latina.
Publicitária, Manoela decidiu viajar pelo país após a formação universitária, momento da sua vida no qual ela descreve como “pressão e prisão”. Em seu último semestre de graduanda, passou uma temporada na Chapada dos Veadeiros (GO) a convite de uma amiga que já era adepta ao estilo alternativo de viagens. Bingo! Aquela experiência de 10 dias foi suficiente para Manoela bater o carimbo sobre qual seria o seu estilo de vida.
Decidiu romper com a “babilônia”, atributo usado para referir-se à vida caótica nos grandes centros urbanos, e se jogar pelo Brasil, vivenciando 1 mês em cada lugar e aprendendo a ser “nativa” ao invés de simplesmente turista. De lá pra cá foi mochila nas costas, miçangas nas mãos, 23 estados na conta e muita história pra contar. Por que choras passaporte?
Pra fora e pra dentro
Mais do que conhecer lugares de natureza exuberante e vivenciar experiências incomuns, a escritora fez um mergulho profundo em suas questões existenciais. “Todas as paisagens que estou descobrindo no caminho, na real, refletem a beleza que estou descobrindo dentro do meu ser”, coloca Manoela no capítulo ‘Descobrindo o meu Eu’, que poderia estar em qualquer livro do Deepak Chopra ou da Monja Cohen, se estes fizessem o estilo de viajante-artesão-hippie (que não é o caso).
Além de ser um manancial de dicas práticas para meter o pé no mundo gastando pouco, Manoela também conta das suas descobertas e introspecções, amores e desilusões, perrengues e diversões vivenciados durante este tempo nas estradas, praias, rios e florestas. Afinal, essa é a dualidade da vida, onde a dor coexiste com a delícia. E sendo uma mulher negra com cabelo rastafári, a viajante não deixa de discorrer sobre a relevância dos marcadores identitários em sua jornada, na qual ainda é raro ver pessoas pretas vivenciando.
Há momentos inusitados, como o de uma carona em 2018. No banco de trás havia uma criança branca de uns sete anos que a questionou: “Você sabia que as pessoas brancas matam as pessoas negras?”. Jordan Peele poderia usar isso como mote para seus filmes de terror. Mas Manoela nos brinda com um dos melhores relatos de suas andanças, fazendo-nos enxergar como a visão racista e desumanizante atinge a todos, incluindo as crianças. Afinal, não se nasce racista: torna-se!
África no coração
Muita gente comenta que a viajante é rastafári, por seu cabelo e estilo de vida meio hippie, já que ela começou vendendo miçangas para poder se sustentar como andarilha. Apesar de feliz com a comparação, Manoela pontua que rastafári é muito mais do que estética. “É um movimento pan-africanista, ou seja, é uma corrente de africanos em diásporas identificados com a sua cultura para manifestar África independente da localização geográfica”, reitera a escritora que também levanta outros aspectos, como a profunda conexão com a natureza e o posicionamento de uma vida pacífica pregado pelo movimento.
Contudo, em alguma medida, Manoela já vivencia a experiência pan-africanista em sua jornada. Apesar de ainda não ter ido ao Continente Africano, no Capítulo ‘Redescobrindo a África’, ela elenca aspectos de vida em comunidade, integração com a vida espiritual, respeito e comunhão com a natureza, temas que havia lido em seus estudos sobre filosofias africanas, e pôde colocar em prática à medida que encontrava outras pessoas pretas em seu caminho. Nesse ponto do livro, Manoela conta histórias que nos lembram as de Sobonfu Somé em seu livro ‘Espírito da Intimidade’ (Odysseus, 2009), onde são narradas as vivências de sua comunidade Dagara, na região de Burquina Faso. A experiência de vida comunitária é importante para o fortalecimento do ser, ideia cultivada pelos ancestrais e que vem sendo perdida num mundo onde imperam o individualismo e as competições.
Nas 136 páginas de um material escrito, revisado, editado e diagramado pela própria escritora, fazemos uma profunda imersão de conhecimento sobre diversos temas, conhecemos novos lugares em nosso país, e de quebra, aprendemos dicas para ter uma experiência mais enriquecedora com nossas viagens. Com uma narrativa simples, direta e perspicaz, ouso dizer que Confissões de Viajante (sem grana) tem grande potencial para virar um best-seller. A viagem de Manoela é o gatilho que despertará muitas outras por aí. E não apenas para fora!
Ficha técnica
Confissões de Viajante (sem grana)
Autora: Manoela Ramos
Ano: 2018
Número de páginas: 136
2ª Edição (S/ editora. Publicação independente)
Onde encontrar: aqui!
*Texto publicado originalmente no portal Aldeia Nagô
*Esse texto foi escrito por Lucas de Matos. Soteropolitano, 24 anos, Comunicador com habilitação em Relações Públicas (UNEB) e Pós-Graduando em Comunicação e Diversidades Culturais (Faculdade 2 de Julho). É poeta e apreciador da literatura.
Foto de capa: Reprodução/Instagram.
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