Escrita Negra

Ndengo

Ndengo
termo afrikano de origem Bantu
palavra que significa
doçura, carinho, afeto
e nem precisa dominar outro dialeto
pra entender do que eu tô falando.

Ndengo
é o que eu tenho pra te oferecer meu preto
é o sentimento que floresce em meu peito
e desabrocha com o alvorecer do seu sorriso
é o que sua voz provoca quando
sussurra em meu ouvido com seu hálito quente
palavras de fogo, chamas desejos
do que pensa e sente.

Queria eu pedir a meu pai Tempo
pra parar quando te beijo
que os segundos não corressem tanto
quando te vejo passando com seu corpo preto
impositivo, contundente
exalando perfume melanina
armado até os dentes
de pensamentos, argumentos
voz que rompe o silenciamento
mas nem sempre foi assim, nós sabemos.

Vivemos tempos de muita dor
e o que eu te proponho como cura, além de luta
é o preto amor!
Não tem sido fácil carregar sob os ombros
esse triste fardo, histórico, pesado
de séculos e séculos de maus tratos
e quem te entende mais do que eu
que tava todo esse tempo contigo
lado a lado?!

Foi tanto tormento, tanto lamento
que o nosso coração ficou adoecido
o que restou de nós
depois que a desgraça branca nos destituiu
de corpo, mente e até do nosso espírito?

E hoje muitas vezes você me trata como inimigo!
Pense comigo
que me machucando estará ferindo a si próprio
não me violente
não reproduza contra mim esse auto ódio
o que eu desejo pra nós tá muito além
dos devaneios desse povo que nos olha como exótico.

Eu te convido ao pódium
a ocupar o primeiro lugar, não mais o espólio
a ser protagonista, a tomar as rédeas de nossa vida
e retomar tudo que é nosso.

É foda sonhar sonhos tão distantes
da realidade conturbada que nos cerca, irmão
e todo esse castelo muitas vezes ser
uma grande romantização
mas como disse Martin Luther King
e eu repito ”I have a dream”
eu tenho um sonho!

E nesse sonho somos livres
e sendo livres, somos plenos pra nos amar
e nos amando, somos plenos pra nos libertar
é uma retroalimentação, mutualismo como na biologia
eu cuido de você, você cuida de mim
eu te ajudo a crescer e cresço com sua ajuda
sabe aquela coisa de troca, dar e receber?

Ndengo, meu preto
é o que eu tenho pra lhe oferecer.
Não me trate menos que uma rainha
e em meu Ilê você será o rei,
mas eu queria mesmo que meu abraço
te protegesse das balas
que meu afeto te livrasse do enquadro dos fardas
e que a nossa liberdade fosse a única lei.

Queria mesmo que meu amor
te embalasse em sono tranquilo
e não nos pesadelos da realidade que te deixa atribulado
que você esteja vivo pra educar também os nossos filhos
e que nosso quilombo se reerga de fato.

Eu sei que você já está farto, exausto
eu também tô!
Dessa gente escrota que nem se ama
e quer botar em cheque o nosso amor
não aguenta ver uma relação próspera
e quer destruir todo um futuro promissor.

Aonde que eu vou deixar de te dar meu colo
pra cair na conversa do descendente de colonizador.
Aonde que eu vou deixar de beijar
essa sua boca gostosa, preto
que vou deixar de fazer um cafuné no seu cabelo crespo
pra dedicar meu afeto a um branco opressor.

Você não é perfeito
mas tu é um homem preto
eu sei bem dos seus defeitos
não passo pano pros seus erros
e exijo seu respeito.

Por que quando o bicho pega
é do seu lado que eu fecho
e decreto
que no encontro dos nossos corpos
no ápice do nosso amor
tão somente pelas minhas unhas
suas costas serão marcadas
não mais pelo chicote do feitor.

Assim como cada parte do seu corpo
que não nasceu pro tronco
não nasceu pra dor
você é um rei
um digno descendente
de Ogum, Oxossi, Xangô.

E eu sou uma rainha
como a guerreira Nzinga
Aqualtune, Dandara
é nas águas de Oxum e Iemanjá
que eu fui abençoada
e é de Iansã a espada embainhada
que na hora certa e com o inimigo certo
vai ser usada!

Somos rainha e rei
e nessa vida louca, tabuleiro de xadrez
vamos traçando nossa tática
somos terra, fogo, ar e água
enfrentando dilemas
resolvendo problemas
mas sempre em caminhada
rumo à nossa emancipação
como filhos de Áfrika!”

*A afropoesia escrita em 2018 é de autoria de Nátali Yamas (BA).
Baiana de Itacaré, das folhas e das águas, educomunicadora, pesquisadora, militante negra, pluriversal. Graduada em Comunicação Social pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) e é mestranda em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Foto de capa: Innoh Khumbuza/Pexels.

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