De modo geral, o epistemicídio pode ser entendido como a destruição dos conhecimentos de determinado grupo. Sueli Carneiro (2023) atualiza e amplia esse significado ao trazer o epistemicídio não só como destruição dos conhecimentos de um sujeito, mas também a destruição do próprio sujeito. Podemos considerar isso como uma das formas mais cruéis de tentativa de apagamento das populações negras, indígenas e de todos os corpos que não representam o dito ideal embranquecido, elitizado, cis, heteronormativo, seja em seus corpos como modos de ser e estar no mundo.
Em sua tese A construção do outro como não-ser como fundamento do ser (2005) e, com o livro Dispositivo de Racialidade (2023), Sueli Carneiro traz por uma perspectiva que considero completa sobre as ações do epistemicídio na sociedade brasileira e como isso foi capaz de definir as desigualdades raciais que ainda vemos em curso no Brasil.
Uma ação que foi responsável por políticas de exclusão racial no país que definiram não somente quem poderia ou não, por exemplo, ter acesso à educação institucional, mas também o não reconhecimento das pessoas negras como detentoras de intelectualidades, culturas, capacidades cognitivas, ao terem seus modos de ser e estar no mundo desqualificados em cada espaço social.
Como é dito por Sueli Carneiro: “A história do epistemicídio em relação aos afro-descendentes é a história do epistemicídio do Brasil” (CARNEIRO, 104, 2005). Ou seja, assim como o racismo não está desvinculado do processo de construção do Brasil, o epistemicídio não está desvinculado da história da população negra no país.
Crescer sem saber ao certo sobre as(os/es) muitas(os/es) que vieram antes de nós, crescer sob a deseducação hegemônica que ensina a não amar a si mesmo, a não se ver como ser humano digno de prosperidade, nas escolas, nos livros didáticos, na televisão, no trabalho, no imaginário social que está refletido em cada espaço. Essas são algumas das consequências que o epistemicídio tenta impor (e consegue).
Não! Abre logo a porra do cofre
Não tô falando de dinheiro, eu falo de conhecimento
Eu não quero mais estudar na sua escola
Que não conta a minha história, na verdade me mata por dentro (…)
Thiago Elniño, Pedagoginga.
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Não há como viver!
O epistemicídio está no cotidiano. A realidade de crescer sem compreender ao certo determinadas violências raciais que nos atravessam e nos distanciam da construção de uma imagem positiva de nós mesmas(os/es). A baixa autoestima do corpo e da mente; exclusão e falta de reconhecimento que pode começar na escola, a realidade de crescer e muitas vezes não reconhecer a própria potencialidade, as máscaras brancas que são impostas para pessoas negras para manutenção de um mundo embranquecido.
Se há um mundo em que nossa existência não é notada, reconhecida e reverenciada, não há como viver. Se os livros, as músicas, as ruas, não dizem nada de positivo sobre nós, não há como viver. Se há ambientes que não notam nossa capacidade de produção de conhecimentos, não há como viver.
O epistemicídio pode silenciar, apagar aos poucos, nos deixar introspectivas(os/es) sem ao menos acreditarmos em nossas várias possibilidades de movimentação. E, pensando em crianças negras e em como nós crescemos em uma sociedade que se construiu em meio ao racismo, se até mesmo o ambiente que convivemos pode estar repleto de pessoas adoecidas pela violência racial, onde estará a voz que nos direciona para um pensamento de autoamor, autoconhecimento ou consciência? O adoecimento da mente como forma de um extermínio gradativo reflete em nossas relações e em tudo o que fazemos.
Irmão, me diz qual é o receio
De saber de onde tu veio
De saber quem você é
Irmão, fizeram tu achar feio
Você vir de onde tu veio
Destruíram sua fé (…)
Thiago Elniño, Diáspora.
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Quem tem direito?
Somos alvos de diversos apagamentos; é como ser uma criança que está descobrindo o mundo, mas que ao fazer questionamentos não recebe respostas. Quem tem direito a uma história, de saber e construir a sua própria? Quais foram as histórias das(os/es) que vieram muito antes de mim? É possível pensar em um passado e futuro que sejam simples, positivos e não sejam marcados pela dor?
O epistemícidio como ação que se legitima em diversos lugares das relações de saber e poder, distorce nossa história e visão de mundo. Sobrevivemos tomando como objetivo a construção de uma vida coletiva; que possibilite o direito a uma vida que não seja definida pela dor, que tenhamos o direito de contar, reescrever, fazer e deixar histórias.
Ao mesmo tempo, a banalização das violências raciais é cada vez mais característico nas sociedades, na qual extermínios dos corpos racializados não causam uma mobilização mundial. Aprendemos como essas violências operam e reconhecemos de onde elas partem, apontamos cada espaço social, apontamos as instituições e também a branquitude. Nós sabemos! Enquanto isso, há uma branquitude que, em sua maioria, não se enxerga dentro do processo de mudança social, há uma branquitude inexistente quando se trata de responsabilização e prática. Que corpo se movimenta e se responsabiliza de fato pelo abismo racial que se mantém?
E cada resgate, cada memória, cada ação de fortalecimento e sobrevivência, é feito pelo aquilombamento que tentamos manter em todos os espaços que estamos. Nas relações, no trabalho, no cotidiano. Ainda há vida e isso se dá por nós mesmas(os/es) e, tem sido assim de modo histórico. Somos nós que reconhecemos nossos conhecimentos, nossas produções, nossas belezas; somos nós quem estamos dando continuidade a nossa existência em meio ao epistemicídio legitimado pela branquitude.
Quem se responsabiliza?
Há de se pensar sobre o lugar de pessoas brancas diante do epistemicídio que as favorece. Quais profissionais brancas(os) em espaços de poder se responsabilizam? Quais chefes de estado não só criam políticas de combate às desigualdades raciais, mas reconhecem o papel das pessoas negras nas tomadas de decisões? Quais professoras(es) brancas(os) enxergam o combate ao racismo como uma agenda política e aplicam isso no cotidiano escolar?
Quais instituições de ensino têm pessoas brancas nos espaços de poder incentivam professoras(es) e se vêem dentro desse processo? Quais professoras(es) brancas(os) universitárias(os) reconhecem que o conforto de suas referências eurocêntricas enquanto visão universal não dão conta da compreensão de mundo e nem da realidade de cada estudante?
Se o racismo ainda desorganiza a sociedade entre iguais e desiguais, se o racismo ainda é o causador massivo das mortes físicas e simbólicas, dos encarceramentos e adoecimentos da maior população do País, representada por 56% da população negra (IBGE, 2022), há um problema racial. Problema esse que não são casos isolados e sim algo que constitui as relações e o cotidiano. E se há um problema racial, há a necessidade de uma agenda política de comprometimento cotidiano contra essas violências que não podem seguir partindo unicamente dos grupos subjugados.
Referências
CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2005.
CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de Racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2023.
ELNIÑO, Thiago. Pedagoginga. Rio de Janeiro, 2017.
ELNIÑO, Thiago. Diáspora. Rio de Janeiro, 2016.
Foto de capa: Norma Montenson/Pexels.
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Cientista social e mestra em Sociologia, ambos pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Cursa o Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Tem como experiência principal as pesquisas voltadas para as relações étnico-raciais, com foco em Educações antirracistas, Descolonização epistêmica e Afrocentricidade.