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O negrume do maracatu cearense: um grito visual de negritude

Lembro-me bem da primeira vez que assisti a uma apresentação de maracatu. Não me orgulho de dizer que não sou uma pessoa muito afeita às festividades de carnaval. Portanto, não foi em um cortejo na avenida que tive essa experiência. A primeira vez que vi uma apresentação de maracatu foi dentro de um ambiente fechado, o auditório de uma das maiores universidades privadas de Fortaleza (CE), onde resido. A apresentação fazia parte do evento de abertura de uma premiação promovida pela Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza (SECULTFOR), de onde, na época, eu era estagiário.

Eu me recordo de ter ficado hipnotizado. Tudo me prendeu a atenção: as roupas coloridas, os batuques, as loas cantadas, os movimentos, as personagens. Consegui notar que havia uma história sendo contada na apresentação, muito embora eu estivesse com dificuldade para identificar ou entender qual era. Saí do evento com o peito cheio e um sorriso estampado no rosto. Mesmo sem entender muito bem do que se tratava exatamente a apresentação, foi como se aquilo, de alguma forma, simplesmente fizesse sentido para mim. Conversava comigo em um nível difícil de traduzir verbalmente. Era sobre mim. Era eu.

Pesquisei um pouco sobre o maracatu na semana seguinte, mas foi somente alguns semestres depois, cursando a disciplina de História da África que entendi bem o que são os maracatus. Eles têm a ver com a memória ancestral da realeza de povos bantos, em sua maioria vinculados ao território hoje correspondente ao Congo, país da região Central do Continente Africano. Os maracatus são, portanto, encenações dos cortejos de coroação dos reis e rainhas do Congo. Como tal, são todos envoltos por uma ritualística cerimonial que tem mesmo a ver com os ritos de uma coroação de verdade. Assim, os maracatus são uma espécie de manifestação de resistência por meio da exaltação de uma memória ancestral da experiência em África.

Sobre esses aspectos dos maracatus eu escrevi de maneira mais meticulosa em um texto que fui convidado a publicar no Mural da Ana Paula, intitulado “A Terra do Sol é negra: maracatu é a África no Ceará”. Enquanto pesquisava para escrever esse texto, encontrei uma informação muito curiosa. Os maracatus surgiram em Pernambuco, no Maranhão e no Ceará. Contudo, o do Ceará parece ser o único a fazer uso do negrume, uma tintura preta utilizada para pintar os rostos dos brincantes de maracatu.

Essa peculiaridade, aliás, rendeu um cômico episódio na Bienal da União Nacional dos Estudantes (UNE) de 2017, sediada em Fortaleza. Durante a abertura do evento, a apresentação do Maracatu Nação Zumbi foi interrompida por militantes de movimentos estudantis da Bahia e de Minas Gerais, que acusava o grupo de maracatu de fazer blackface. À época, isso suscitou um debate sobre o negrume ser ou não blackface, sobre os sentidos e a necessidade desse elemento cênico nas manifestações cearenses de maracatu.

Foto: Fernanda Siebra/SECULTFOR.

Penso que não há a necessidade de escrever uma coluna com o título “Negrume não é blackface!” (rindo). De toda sorte, gostaria de aproveitar justamente o fato de não ser tratado especificamente do negrume no texto para o Mural da Ana Paula para falar dele aqui neste espaço de uma maneira (talvez) menos academiquinha.

Os primeiros maracatus registrados no Ceará datam da década de 1880. Desde o início, vinculado à Irmandade do Rosário dos Homens Pretos, ele já possuía a conotação de elaboração de uma memória sobre a experiência em África, seus símbolos e suas cerimônias de grandiosidade e realeza. Era também um momento de sonho. João Brígido, em texto de 1889, escreve que “os negros eram autonomos, uma vez por anno, – dia de Reis. Um dos mais influentes envergava o manto, punha corôa e tomava o sceptro, exercendo a realeza de papelão”. A experiência do festejo de maracatu aqui no Ceará, portanto, tinha a ver com um desejo que a suposta liberdade alcançada com a assinatura da abolição não dava conta. Os brincantes, negros, queriam mais: autonomia. Maracatu era sobre a suspensão das amarras, era o momento do sonho com a emancipação.

Desde o início do século XX já se tem registros do uso do negrume na festividade. Todavia, até onde se sabe, só ganhou força no fim da terceira década do século XX. Foi o seu uso no Maracatu Az de Ouro, criado em 1936, que popularizou o uso da tintura preta.

São várias as teorias sobre a origem da prática de pintar o rosto. Uma das que mais gosto, fala que o negrume passou a ser utilizado como uma forma de esconder a identidade dos brincantes. Isso teria a ver, sim, com a abstração da individualidade em favor da entrega ao coletivo, mas principalmente com uma tentativa de se proteger da perseguição policial. Assim como o samba, a capoeira e outras manifestações culturais e religiosas negras, o maracatu também foi perseguido e reprimido pelo Estado após a abolição. Assim, nesse contexto, o negrume adquire um caráter de elemento protetivo e, mais uma vez, fala de resistência.

Outra teoria bastante difundida diz o seu uso tem um caráter político, de oposição aos discursos de branqueamento do Ceará, que buscavam negar a presença de negros no processo histórico de construção do Estado. Nesse âmbito, passaria a ser, portanto, uma afirmação contundente de uma identidade cultural negra no Ceará, uma resistência ao apagamento da negritude na formação étnica da cearensidade.

Quem conhece o Ceará e os debates sobre raça feitos entre os cearenses, sabe que é comum que se escute algo sobre não existir negros por aqui. Isso decorre, dentre outras coisas, pelo fato de que significativa parcela das pessoas negras no Estado eram libertas, dada a economia sustentada pela atividade pecuária. Dessa forma, a equivalência entre negro e escravizado não funcionava muito bem para dar conta da realidade cearense. Ou seja, se não temos tantos escravizados, então não temos tantos negros. Esse apagamento da identidade negra na origem do Ceará foi endossada quando este se tornou a primeira província a abolir a escravidão, quatro anos antes do restante do país.

Pois o negrume no maracatu cearense parece ser justamente um manifesto contra essa falácia. É ele próprio o estandarte de negritude, o lembrete de que negros existem no Ceará. Um lembrete de que nossa tradição vem de África e que foram pessoas negras que construíram esse Estado, sua história e cultura. O negrume dos nossos maracatus é o grito visual da negritude cearense.

Foto de capa: Fernanda Siebra/SECULTFOR.

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