A frase do título é de Euclides da Cunha (1866-1909). Citada na obra “Os Sertões”, é conhecida por descrever a realidade daqueles que vinham das cidades interioranas do Nordeste. Joaquim Cornélio Primo (1927-2017) foi um desses sertanejos, que veio para a cidade grande em busca de melhores de condições de vida. Mas as dificuldades que Bel [apelido que ganhou na infância] enfrentou durante toda sua trajetória não o impediu de ver no trabalho a possibilidade de mudança de vida. A vida de Bel é um exemplo dessa vida errante do sertanejo a fugir da seca em busca de dias melhores e da força de vontade desses conterrâneos.
“Seu Bel”, como era conhecido, nasceu em 14 de setembro de 1927, no distrito de Carnaubinha (CE), conhecido hoje por município de Milhã (CE), a 301 km da Capital, e faleceu em Fortaleza (CE) no 29 de maio de 2017, aos 89 anos. Viveu a seca nordestina desde a infância. “O papai foi mais um sertanejo que viveu e fugiu da grande seca para a ir para a cidade grande”, recorda Valderir Carneiro Primo um de seus filhos. Mas a seca não o transformou numa pessoa amargurada ou triste. “Em seus momentos de folga, era sempre aquele homem alegre, feliz, tocador e cantor. Tinha aquele lado artístico e, sobretudo, aquele típico sertanejo religioso. Ele era fã de Luiz Gonzaga porque para o sertanejo daquela época, ele era um ícone”, revela o filho.
Infância
A infância no sertão foi difícil, pois além da seca e da pobreza extrema, desde cedo, Bel teve que lidar com perdas. Foi o sétimo filho de 10 irmãos, tendo perdido sete dos seus irmãos, que faleceram precocemente, devido a uma praga que teve na região em que vivia na época. Aos sete anos de idade, perdeu mãe em decorrência de uma infecção, ocasionada por um parto caseiro. E, logo no ano seguinte, seu pai também veio a falecer, vítima de cirrose hepática. No entanto, os eventos tristes não o fizeram perder a esperança em dias melhores.
Em meio às perdas e decidido a reconstruir sua vida, juntamente com as duas irmãs, foi morar na casa de um tio paterno, em Pau Branco (CE), a 277 km de Fortaleza. Segundo seu filho Valderir, o parente exigia dos filhos e dos sobrinhos que trabalhassem para ajudar no sustento da casa. “Era um tio carrasco, pois dizia que filhos não tinham que estudar. Na época dele, estudar era coisa para rico. Pobre tinha que trabalhar mesmo”, conta Valderir sobre a realidade que permeava a vida de Bel.
Começou a trabalhar ainda menino e aprendeu a ter responsabilidades de adulto desde cedo. Aos 15 anos, Bel já tinha cavalo e um pedaço de terra, mas só aos 18 anos, buscou se alfabetizar. A mãe alfabetizou os irmãos mais velhos de Bel, mas ele não teve oportunidade de ser alfabetizado pela mãe, que sabia ler um pouco mais do que os demais da comunidade em que viviam. Apesar de não ter tido oportunidades para estudar quando criança, buscava sempre manter o jeito educado. “O jeito dele de ser, as pessoas achavam que ele fosse uma pessoa letrada. O pai sempre teve esse aspecto pelo fato de ser uma pessoa polida, de saber falar”, lembra Valderir.
Ainda no sertão, nos anos 1950, começou a estudar música, lendo e escrevendo partituras. Passou a fazer parte de um grupo de forró pé de serra, tocando triângulo e zabumba, sempre na companhia da sua irmã Filó, que o acompanhava nas apresentações. Tanto tocava e cantava quanto dançava. “Ele era um pé de valsa. O papai foi muito namorador, as moças se interessavam muito por ele na época, pelo fato de ser polido, bem vestido e educado”, afirma o filho Valderir. Em Fortaleza, aprendeu a tocar sanfona. Mas, mesmo com a aptidão pela música, Joaquim resolveu trilhar seus caminhos com uma profissão fixa, que lhe desse estabilidade.
A vida em Fortaleza
Motivado e esperançoso por dias melhores, resolveu mudar-se para a Capital cearense, no ano de 1954, para morar na casa da irmã mais velha, Clotilde, no bairro Monte Castelo. “Aqui ele chegou sozinho e foi onde ele casou, teve filhos, netos e bisnetos”, conta o filho. Em busca de melhores condições de vida, na cidade grande, ele trabalhou em uma loja de peças para carros como Auxiliar. Mas a maneira como atendia às pessoas o fez subir para o cargo de vendedor. Depois, trabalhou como taxista, servidor público na antiga Rádio Patrulha [o equivalente hoje a Polícia Militar do Estado], Secretaria de Segurança Pública e Secretaria de Justiça. Aposentou-se como funcionário público estadual aos 56 anos, em maio de 1983.
Em 1958, casou-se com sua prima Oswaldina. Tiveram quatro filhos, mas somente o mais velho sobreviveu, Valdevan. Em 1962, sua primeira esposa cometeu suicídio, deixando-o viúvo. Mas a vida de pai solteiro não o fez desistir de construir uma nova família. Em 1965 veio o segundo casamento, com Francisca. Com ela, constituiu uma família de quatro filhos, Vanderler, Valdenir (in memoriam), Valderir e Robério. Em 1969, decidiram-se mudar para a Barra do Ceará, quando o bairro era somente mato e estrada.
Gestos e jeitos
A simplicidade era uma característica marcante de Joaquim, que trazia consigo o jeito calmo, educado e tranquilo. Não economizava gentileza em sua forma de agir, o que cativou muitas das pessoas que tiveram a oportunidade de conhecer e conviver com ele. “O pai era compreensivo. Ele nunca ficava brigando com a gente, ele tentava sempre conversar e compreender. Dentro das possibilidades financeiras, ele tentava fazer os nossos gostos. Ele foi um pai esforçado”, afirma Robério Carneiro Primo, seu filho mais novo. Era pelas atitudes que Bel demonstrava seus sentimentos pelas pessoas que estavam à sua volta. Nas entrelinhas, permaneciam seu carinho e cuidado com os filhos e, mais tarde, com os netos e bisnetos.
“Seu Bel” também foi um homem religioso. Dedicava parte de seu tempo às atividades da Capela de São Luís da Paróquia Nossa Senhora da Assunção, na Barra do Ceará. Católico assíduo, ele frequentava o Círculo Bíblico e Terço dos Homens, além de sempre ir às missas nos finais de semana e realizar orações na sua casa com os amigos da igreja. “Ele era devoto do terço e de Nossa Senhora. O pai era o típico do homem sertanejo religioso, que rezava para a chuva vir”. A forte relação com a religião motivava Bel também ler a bíblia todos os dias, mesmo com a pouca habilidade que tinha com a leitura.
“Toda vida ele teve aquele jeito dele, de ter muito cuidado com as próprias coisas, de deixar tudo bem organizado e guardado”, aponta Vanderler Carneiro Primo seu segundo filho mais velho. A relação de zelo com os seus objetos era uma característica presente em Bel. “O pai gostava sempre gostou de guardar as coisas para lembrar no futuro. Ele era um colecionador”, destaca seu outro filho, Valderir. Em sua casa, permanecem até hoje o rádio de pilha, as moedas antigas [réis, cruzado e cruzeiro], o toca disco, os utensílios antigos de fazer a barba, a boina e o chapéu. Todos os seus objetos ele gostava de guardar com carinho, e a partir deles sua lembrança está preservada para sua família.
Foto de capa: Arquivo pessoal.
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Jornalista profissional (nº 4270/CE) preocupada com questões raciais, graduada pela Universidade de Fortaleza (Unifor). É Gestora de mídia e pessoas; Fundadora, Diretora Executiva (CEO) e Editora-chefe do Negrê, o primeiro portal de mídia negra nordestina do Brasil. É autora do livro-reportagem “Mutuê: relatos e vivências de racismo em Fortaleza” (2021). Em 2021, foi Coordenadora de Jornalismo da TV Unifor. Em 2022, foi indicada ao 16º Troféu Mulher Imprensa na categoria “Jornalista revelação – início de carreira”. Em 2023, foi indicada ao 17º Troféu Mulher Imprensa na categoria “Região Nordeste” e finalista no Prêmio + Admirados Jornalistas Negros e Negras da Imprensa Brasileira em 2023 e 2024. Soma experiências internacionais na África do Sul, Angola, Argentina e Estados Unidos.