Ampliar o alcance dos debates e discussões que acontecem no meio acadêmico é fundamental. Contudo, a depender de como isso é feito, essa ampliação do alcance oferece certos riscos. Um desses riscos, talvez o principal, é o de esvaziamento de sentido das discussões e principalmente dos conceitos que nelas são mobilizados.
Aos poucos, uma chave de leitura ou uma categoria de análise vai se tornando um espantalho teórico isolado, que parece funcionar para explicar qualquer coisa sem que seja preciso estabelecer uma vinculação com outras categorias de análise, dispensando parte considerável do esforço intelectual.
Depois, esse espantalho teórico vai gradativamente se transformando em uma mera palavra comum, uma expressão – uma frase pronta, quando muito –, totalmente desprovida do seu sentido original. Se antes parecia servir para explicar qualquer coisa em 30 segundos, agora só serve para dar um ar de credibilidade a qualquer análise feita com muito improviso e pouco embasamento.
“Racismo estrutural”, formulação teórica que ganhou força com o trabalho do Professor Silvio Almeida, é um bom exemplo dos perigos desse esvaziamento semântico.
Os maus usos
Do que pode ser percebido acompanhando os telejornais, a timeline do Twitter, as notas de esclarecimento e os pedidos de desculpas de gente branca na internet, a gente pode destacar dois principais equívocos ao mencionar a coisa “do racismo estrutural”. Cada um deles se encaixa muito bem nessas etapas da perda de sentido do termo.
O primeiro que merece destaque é o espantalho teórico do jornalismo brasileiro: “o Racismo Estrutural”. É quase um nome próprio, como se chama “o Fábio” ou “o André”. Mais do que uma forma de explicar como funciona o racismo e qual o papel que ele desempenha na maneira como o mundo se organiza, é meio que um dentre tantos outros “tipos de racismo”. Ao lado do racismo institucional, do racismo epistêmico, do racismo pessoal/individual e do racismo recreativo, “o Racismo Estrutural” se torna mais uma dentre as tantas formas pelas quais pessoas não-brancas são subjugadas na sociedade.
O segundo mau uso do termo é aquele que a gente geralmente vê em notas de esclarecimento e em pedido de desculpas de gente branca que fez besteira. Esse sim completamente desprovido do sentido original e com uma nova significação completamente nada a ver. “Ah, não sou racista, isso que eu cometi foi racismo estrutural… Desculpa se alguém se ofendeu” (risos). O que é isso, gente? “Racismo Estrutural” não é um vestígio de um “racismo de verdade” que sumiu e deixou apenas traços que vez ou outra dão algum trabalho. Racismo não é apêndice!

O que é uma estrutura?
Antes de entender o que significa dizer que o racismo é estrutural, penso que é importante ter uma noção geral do que é uma “estrutura”. De forma geral, a estrutura é uma série de relações entre entidades sociais que se mantém durante o tempo, sem depender dos indivíduos que a compõem. No pensamento marxista, esse termo, muito consolidado, pode ser entendido como a forma da produção social da vida.
Para Marx, estrutura é o produto da relação dialética entre infraestrutura e superestrutura, e é no seio desse produto que nós estabelecemos determinadas relações que são, ao mesmo tempo, necessárias para a produção social da vida e alheias à nossa vontade individual.
Em linhas gerais, infraestrutura corresponde às forças de produção (matéria-prima, meios de produção/postos de trabalho e os próprios trabalhadores) e superestrutura é associada ao produto das estratégias de dominação burguesa (as instituições político-jurídicas do próprio Estado, os meios de comunicação, a religião e as artes, por exemplo), mais vinculada, portanto, a um caráter ideológico. A combinação entre essas formas produz o que Marx chama de estrutura social, que recebe esse nome justamente porque funciona como um elemento estruturante, que sustenta a organização da sociedade capitalista tal como ela é.
Existe, portanto, uma relação incontornável entre ideologia e materialidade. Falar de macroeconomia, por exemplo, não é só falar da circulação de dinheiro ou dos investimentos no mercado financeiro em números. Falar de macroeconomia também é falar da lógica de pensamento que justifica e “dá sentido” a essa forma de se relacionar com a economia.
Que quer dizer “Racismo Estrutural”?
Quando o Professor Silvio Almeida se refere à ideia de “racismo estrutural”, o que ele traz é a concepção de que o racismo é uma dessas estruturas sociais que sustentam as relações sociais dentro do capitalismo. Nesse raciocínio, o racismo não é um acidente, uma anomalia ou uma patologia social. Nas palavras do próprio Silvio, “o racismo, independentemente de a gente aceitar ou não, ele constitui as relações no seu padrão de normalidade”.
Trata-se, portanto, de entender que o racismo é uma forma de racionalidade. Nosso processo de subjetivação, de formação da nossa subjetividade, passa pelo racismo. Sendo assim, o racismo constitui todas as nossas ações, sejam elas conscientes ou não. Portanto, ele pauta tanto a construção da realidade quanto a normalização desta na forma como a gente a percebe.
O racismo não produz só a materialidade dos negros pobres e as políticas de violência policial e encarceramento em massa. Ele produz também a subjetividade que tende a aceitar isso como natural, como funcionamento normal da vida social. O racismo produz a subjetividade que normaliza a ausência de negros em posições de poder. É essa combinação cruel entre economia, política e subjetividade que caracteriza o racismo enquanto um elemento estrutural.
Racismo estrutural, portanto, não é o nome que se dá à manifestação de um tipo específico de racismo. Tampouco é sobre aquele racismo “vestigial”, que acabou acontecendo por acidente. Falar do racismo enquanto estrutura é entender que todo racismo é estrutural, pois o racismo estrutura as relações sociais e organiza a sociedade para funcionar do jeito que ela funciona e sempre funcionou. Projetos de mudança que não se proponham a romper com as estruturas sociais não podem, portanto, acabar com o problema de fato. É por isso que, parafraseando o que defendi na minha coluna da semana passada, o antirracismo não pode ser capitalista.
Foto de capa: Reprodução/YouTube.
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Historiador pela Universidade Federal do Ceará (UFC), atuando como professor de História. Tem experiência com Patrimônio Histórico e Cultural (SECULTFOR) e estuda trauma em literatura de testemunho na Ditadura Civil-Militar, racismo ambiental e necropolítica. Gosta de música, café e outras artes, tem interesse em temas relacionados à política e cultura e uma paixão inexplicável por aviões.