Colunas Covid-19

Quem não morreu, tá querendo morrer

Às sextas-feiras, eu tenho um encontro marcado com o meu psicólogo. Faço acompanhamento pelo menos desde o fim de 2016, em decorrência de um quadro depressivo cujos sintomas apareceram em meados de 2013.

Na última sexta-feira, dia 26, eu levei para a sessão uma lista de queixas e sintomas do que parecia ser, mais uma vez, uma crise depressiva. Disse a ele que há dias não consigo sentir ânimo para nada. Não consigo dar conta dos meus afazeres, não consigo executar tarefas básicas, como lavar a louça ou mesmo sair da cama. Simplesmente não tenho energia para dar conta de viver.

Ao final desse meu relato, que passou, em alguma medida, pela situação caótica e desesperadora do país, a intervenção do meu terapeuta veio na forma de uma pergunta: “Está valendo a pena viver no momento atual?”.

Eu tive Covid-19 durante este mês, quadro leve, sem nenhum susto. Fiquei 14 dias completamente isolado dos meus pais e da minha irmã, sem nenhum contato com eles, trancado dentro do meu quarto. Os sintomas dessa crise depressiva apareceram nos últimos quatro dias desse isolamento. Ouvir essas perguntas do psicólogo me fez pensar em algumas coisas.

Na filosofia política do século XVI, a ideia de soberania tem a ver com a capacidade de um Estado determinar suas próprias regras e sua própria forma de organização sem interferências externas. No século XXI, com o desenvolvimento do capitalismo financeiro e o seu desdobramento na mentalidade neoliberal, o filósofo Achille Mbembe, 63, dá a essa palavra outros contornos.

Achille Mbembe, 63 anos. Foto: Nicolas Marques/KR Images Presse.

Para o filósofo e cientista político camaronês, os limites da soberania estão na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Sendo assim, o controle sobre a mortalidade e a definição das condições de vida se tornam a máxima expressão da manifestação do poder. É o exercício desse aspecto da soberania que configura a necropolítica, por meio da qual as forças dominantes do capital controlam a vida (e a morte) dos corpos subalternos.

Tentando encurtar o caminho, é interessante que se tenha em mente duas coisas: a necropolítica tem muito claro seus alvos e suas bases de sustentação. Seu alvos são sujeitos cujos corpos são marcados como mercadorias de menor valor, de valor irrelevante ou mesmo de valor nenhum (pretos, pobres, criminosos, etc). E esses corpos são assim marcados porque o que sustenta a necropolítica é o capitalismo, hoje na sua forma neoliberal, que nos faz ler o mundo inteiro e tudo o que nele existe a partir de uma linguagem econômica.

É com os alvos marcados e em nome da saúde econômica do país, que a gente vê o atual Governo aproveitar a pandemia para acelerar o trabalho da necropolítica de matar preto e pobre, produzindo um verdadeiro genocídio. Depois de pensar sobre a pergunta que meu psicólogo fez, percebi que Bolsonaro e seus cúmplices operam esse genocídio por três vias distintas.

A primeira é a sabotagem ao combate à pandemia, incentivando posturas incompatíveis com a preservação da vida além de dificultando e atrasando tanto quanto pode a eficiente execução de um plano nacional de vacinação. Então, diante do colapso que eles mesmos ajudaram a provocar, deixam morrer aos milhares aqueles que são acometidos pelos quadros graves da doença.

A segunda costuma ser ignorada pela imprensa burguesa. Os que se livram da doença ou sobrevivem a ela, logo são devorados pela política econômica neoliberal, que torna cada vez mais difícil o acesso ao mínimo de chance de sobrevivência. A comida, cada vez mais cara; o parco auxílio prestado pelo Governo, cada vez menor; poder de consumo já não mais existe. Os pobres (dos quais 75% são pessoas negras) são, assim, entregues à própria sorte, colocados para morrer de fome.

A terceira, contudo, parece ser pouco apontada, mesmo entre os críticos ferrenhos do Genocida. Trata-se da produção de uma realidade quase distópica, tão ruim e tão pior a cada dia que passa, que a vida se torna inviável e sonhar se torna impossível. Não se pode mais fazer planos para o futuro e o próprio presente é um filme de terror. Não vale a pena estar vivo no Brasil de Bolsonaro e não há, no futuro, qualquer expectativa mínima de compensação.

Jair Bolsonaro, o genocida eleito para ocupar a cadeira da Presidência da República. Foto: Reprodução/Internet.

Necropolítica também se traduz em uma gestão tal das condições de vida que submetem os sujeitos a contextos tão hostis que fazem a morte e a vida serem muito parecidas entre si. O genocídio do qual Bolsonaro é signatário também aparece no adoecimento psíquico generalizado. Esse se desdobra em uma alta taxa de suicídios, sim, mas essa alta é só mais um sintoma. Sintoma de que estar vivo sob essas condições é tortura.

Um número crescente de mortos e doentes, um país profundamente mergulhado em um colapso generalizado e nenhuma ação estatal para tentar reverter esse cenário. Pelo contrário, o que se percebe é a execução de uma ideologia econômica que produz cada vez mais empobrecimento e desemprego, lançando ao desespero até quem não foi engolido pela tragédia sanitária. O governo Bolsonaro age como uma agulha injetando mais caos no caos.

Futuro? Não tem. O cenário só piora e é cada dia mais difícil imaginar um futuro melhor. Sem poder sonhar em meio ao caos, viver não vale mais a pena. A sensação que tenho é a de que quem não morreu, está querendo morrer. E os maiores alvos dessa política mórbida do capital a gente sabe quem somos.

Foto de capa: AFP/AFP.

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