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Sobre viver com medo

Lá pelos meus oito anos de idade eu viajei para “longe” sem meus pais pela primeira vez. Era um passeio da escola para algum parque aquático em uma cidade distante da capital do Ceará, onde eu morava. Longe da supervisão dos meus pais eu continuei sendo uma criança e, como tal, brinquei sem me preocupar muito com qualquer tipo de responsabilidade.

Ao voltar para Fortaleza, enquanto esperava meu pai ir me buscar no pátio da escola, comecei a conferir se tinha comigo tudo o que tinha levado para o passeio. Parecia tudo ok, com exceção de um pedaço retangular de papel recoberto de plástico: eu havia perdido o meu RG. Foi com oito ou nove anos que eu ouvi do meu pai pela primeira vez que eu não poderia andar por aí sem documentos.

Anos depois, com mais ou menos 10 ou 12, meu pai teve a mesma conversa comigo. Eu estava na casa da minha avó e tinha saído para comprar algumas coisas para o almoço. Quando voltei, ele me perguntou se eu havia levado o RG. Respondi que não. A sua tréplica foi mais ou menos a seguinte: “Você já é um homem; não pode mais andar por aí sem documento; tem que estar com documento toda vez que for sair, nem que seja para ir até a esquina”. Desde os meus 10 ou 12 anos, eu confiro sempre se estou portando meus documentos ao sair de casa.

Toda vez que visito uma livraria me sinto desconfortável. Não consigo lembrar de uma vez sequer em que os olhares atentos dos seguranças não tenham acompanhado cuidadosamente meus movimentos entre as seções de História, Filosofia e Ciência Política. Lembro-me bem de, quando adolescente, não conseguir entender por que motivo me seguiam ou por que pensavam que eu, mesmo andando sempre “muito bem arrumado”, poderia roubar alguma coisa. Entendia menos ainda qual seria o grande problema em roubar livros. Livros!

Certa feita, quando muito criança, fui a um supermercado com meus pais. Na época, meu pai estava estudando para o concurso que lhe garantiria o cargo que ocupa hoje. Ele aproveitava cada segundo para isso. No supermercado, fui cuidar das compras com minha mãe e ele ficou sentado em uma lanchonete folheando o Vade Mecum, lendo e sublinhando códigos e leis. Eu deveria ter uns oito ou nove anos.

Na fila do caixa, vi um pirulito que era também uma lanterna e era também de algum super-herói ou coisa parecida. Fiquei extasiado. Queria muito aquele pirulito. Perguntei à minha mãe se poderia levar e ela me disse que fosse pedir ao meu pai. Sem largar o pirulito, passei pelo caixa e fui correndo em direção ao meu pai perguntar se poderia levar. Os alarmes do supermercado soaram alto. Dois seguranças correram atrás de uma criança de oito ou nove anos por causa de um pirulito. Passei meses com medo de cruzar o caixa de um supermercado de novo.

Sexta-feira, 20 de novembro, acordei com a revoltosa notícia de que um homem havia sido espancado até a morte por seguranças da mesma rede de supermercados que há 15 anos colocou dois seguranças para correr atrás de uma criança de oito ou nove anos por causa de um pirulito. João Alberto estava esperando a esposa pagar as compras e isso foi interpretado como uma movimentação suspeita. Passei o dia angustiado. Com medo. Relembrando episódios, revivendo cenas, mensurando riscos que corri ao não tomar cuidado com cada passo meu.

Na quarta-feira, 18 de novembro, um dia antes da morte de João Alberto, eu fui a um mercado comprar um café. Passei vários minutos diante da gôndola, tentando escolher qual café-metido-a-besta eu iria levar daquela vez. Escolhi e fui para a fila. Da fila, pensei: “Pô, acho que quero um chocolate também”. Voltei e fui buscar um. De volta para a fila. Mais uma vez, pensei: “Acho que posso me mimar com uma outra coisa”. Voltei ao mercado. De novo na fila. Olhei o celular e vi uma mensagem da pretinha-que-sou-afim me pedindo para olhar se tinha um vinho que ela gosta. Saí da fila de novo. Olhei os vinhos. Tirei foto. Voltei para a fila.

Quando li sobre o que aconteceu no Carrefour, pensei imediatamente que algo parecido poderia ter acontecido comigo na quarta. Essa movimentação incomum de vai-e-vem da fila para os corredores do mercado são sei lá quantas vezes mais suspeitas quando praticadas por pessoas como eu. Passei a sexta-feira inteira paralizado, tomado por raiva e medo. Fiquei pensando que, na quarta-feira, meus pais estavam do outro lado da rua tomando açaí. Não teriam me visto ser retirado da loja pelos seguranças nem teriam ouvido meus gritos de socorro.

Ser um homem negro no Brasil é, desde muito cedo, viver uma constante contradição. Pelos outros, você é percebido como uma ameaça, um potencial agressor ou infrator. “Sinto que o mundo tem medo de mim”, canta Baco, né? Parece que estão todos o tempo todo tentando antecipar movimentos para se proteger da gente.

Acontece que o inverso, sobre o qual pouco se fala, é muito mais próximo do real. A gente vive com medo. Com medo do que podem pensar, com medo de como podem tentar se defender de uma ameaça que só existe na cabeça deles. O gelo do corpo sempre que algum alarme de loja soa. O arrepio de toda vez que se cruza com uma viatura da polícia. A vontade de gritar que não tem nada de ameaçador dentro da mochila quando a porta giratória do banco trava por conta do Kindle. Tudo isso é manifestação de medo.

Desde muito cedo, eu fui ensinado a medir meus movimentos e tomar uma série de precauções na tentativa de explicar a quem não me conhece que não precisa ter medo de mim. Mas não importa o lugar, o horário, a forma como me visto, às vezes nem mesmo a forma como falo… eu ainda sou uma ameaça. Ser um homem negro no Brasil é crescer com medo. Tá todo mundo com medo. Mas sobre o meu não se fala. Nem mesmo quando o medo dos outros tira uma vida dos meus. Justiça para João Alberto.

Foto de capa: Danilo Verpa/Folhapress.

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