Atualizado às 11h40 do dia 04/09/2020
Enquanto homens negros, somos constantemente convocados para o lugar da virilidade sexual, e caso não cumpramos esse papel, nossa identidade de homem poderá ser questionada. O medo de não ser considerado homem (ou o homem macho), nos coloca nesse lugar de sempre reafirmar quem somos (ou de como queremos que os outros nos vejam), e por consequência, buscamos afirmações simbólicas de poder oferecida pelo patriarcado aos homens brancos. Isso fica muito nítido quando percebemos conversas de grupos de homens em bar, no qual é comum relatos de situações relacionadas a aquisição de bens materiais, a relações com diversas mulheres sem responsabilidade e a sua grandiosa performance sexual com as mulheres.
O interessante é que normalmente nós mentimos sobre essas “conquistas” do mundo masculino afim de ter mais “prestígio” entre os nossos, e sempre tem aquele homem do grupo que é conhecido justamente por mentir exacerbadamente contando “vantagem” masculina que todo mundo já sabe que não é verdade. Para mim, é muito sintomático a necessidade que sentimos em mentir para parecer ser mais forte, mais viril e sexualmente ativo do que realmente somos. É como compreendêssemos que não iremos alcançar esse lugar ideal de homem branco viril, mas que através da mentira podemos experenciar no simbólico uma sensação de validação e suposto poder.
Eu já fui esse homem que precisou mentir para reafirmar esse lugar e evitar questionamento sobre a orientação sexual ou ser sacaneado na roda de amigos. Lembro de ter dito que não era mais virgem muito antes de ter feito sexo pela primeira vez e de ter inventado experiências sexuais para me sentir parte do assunto. Para nós homens negros e nordestinos, o lugar do sexo pode assumir uma posição ainda mais delicada quando atravessada pela hipersexualização dos nossos corpos.
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Durante minhas relações afetivo-sexuais, eu sentia essa cobrança por demostrar essa virilidade sexual, seja através da ereção rápida, da duração do sexo ou do ato de provar que estaria sempre preparado e disposto a fazer sexo. Percebo que, pelo fato de ser de Salvador (BA), o olhar sexualizado ao meu corpo se potencializava, a partir do momento em que correspondo a ideia do homem macho do cangaço, um homem bruto, fogoso, virial e neandertal. Na busca de ser identificado como homem a partir desse lugar, já me vi em situações na qual questionei a minha condição de homem, justamente por não atender a este homem que eu acreditava que deveria ser.
Eu lembro de uma situação que aconteceu comigo há alguns anos, que me fez questionar a ideia de que homem não nega fogo. Neste caso, sai com uma mulher (na qual tínhamos amigos em comum) que havia conhecido nas redes sociais e era a primeira vez em que nos encontrávamos pessoalmente. A noite do encontro foi ótima, muita conversa e interações até chegarmos no carro, onde o clima esquentou e se iniciou uma interação mais intensa entre os corpos.
Em um dado momento, comecei a ficar preocupado, pois não estava me sentindo confortável em ter uma relação sexual naquele momento, e ela estava propondo irmos a um lugar “mais reservado”. Entre contar para ela que não me sentia confortável de ter uma relação sexual naquele momento e inventar uma desculpa para sair daquela situação, eu escolhi a pior alternativa e voltei para casa depois de mentir para moça.
Neste caso, inventei que precisava acordar cedo no outro dia para levar meu irmão para fazer prova, e por isso não poderia ficar mais tempo com ela. Antes de tomar essa decisão, fiquei pensando também como a moça se sentiria se ouvisse que eu não estava confortável em fazer sexo naquele momento, pois muitas mulheres podem reproduzir a ideia machista de que todo homem quer fazer sexo, então se ele nega o ato, a culpa do não desejo masculino é da mulher.
Durante o trajeto até minha casa, fiquei me culpando por ter “negado fogo”, comecei a questionar minha sexualidade, me achei fraco, pouco viril e me senti “menos homem” naquele momento. No dia seguinte, a culpa de não ter correspondido a expectativa de estar pronto para o ato sexual me atormentava, junto a isso eu ainda estava mal por ter mentido sobre o que tinha ocorrido. Após pensar muito sobre o assunto, mandei uma mensagem para a moça explicando tudo o que tinha acontecido e fui acolhido e confortado de uma forma que eu não esperava.
Lembro que na ligação, a moça relatou que ficou confusa naquela noite, mas que agora tinha entendido as questões que envolveram a minha mentira e toda aquela situação. A partir deste momento, comecei a me questionar porque estava me culpando daquela forma e o que tinha significado o desconforto de não ter atendido ao anseio sexual de uma outra pessoa.
A partir dessa experiência, eu pude compreender que a angústia e o mal-estar que senti estavam relacionados ao fato de não ter correspondido a identidade masculina. Identidade essa que nos aprisiona em caixas, nos faz construir parâmetros de existência que nos reduzem e distanciam de outras formas de ser.
Eu não entendi o porquê daquela situação mexer tanto comigo, e então me dei conta as tantas vezes em que não neguei fogo por receio de não ser visto como este homem preto viril, forte e másculo. Diante desse comportamento de não atender aos estímulos sexuais de outras pessoas, eu me coloco enquanto objeto e construo a ideia de que, independente do que aconteça, eu irei ceder. Independente da situação em que me encontre, de como me sinta, dos meus desejos e das minhas vontades, pois a lógica é a do extinto, da necessidade e do não humano.
Hoje, para mim, ser um homem preto nordestino que nega fogo é um gesto de humanização de um corpo que frequentemente é violentado e animalizado, por mais que ainda seja difícil me ver neste lugar mais cuidadoso e generoso comigo.
Foto de capa: Pexels.
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Psicólogo e Especialista em Saúde Mental e Atenção Básica pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). É pós-graduado na especialização em Direito Humanos, Saúde e Racismos pela Fiocruz. Homem cis preto de Salvador (BA) que gosta de compor histórias e sentimentos. Já atuou profissionalmente na política de assistência social junto à população em situação de rua, na área da saúde mental, clínica psicológica e garantia dos direitos da criança e adolescente em contexto de vulnerabilidade. Escreve e se interessa por temas relacionados à saúde mental da população negra, masculinidades negras, relações não-monogâmicas, relações raciais e política.