Assistindo a uma aula de fotografia online, vi ao fundo da sala da professora uma cópia do livro Um Defeito de Cor (Ana Maria Gonçalves) e, naquele momento, decidi ler aquele livro. Como alguém decide ler um livro apenas por vê-lo na estante de alguém? Talvez não haja uma explicação lógica, mas decidi ler o título que tem mais de 900 páginas. Nunca tive problemas com livros grossos, contanto que a história seja boa.
E foi assim que comecei minha leitura da história contada por Kehinde, uma velha senhora cega que está num navio retornando ao Brasil em busca de seu filho há muitos anos perdido. Kehinde está narrando a história para que sua acompanhante escreva em forma de carta para seu filho, mas ao mesmo tempo, parece que está falando com o leitor. Foi como me senti, sentada, ouvindo uma velha senhora me contar uma história que cativa desde as primeiras linhas.
Aos oito anos, Kehinde saiu de Savalu para Uidá com sua avó e sua irmã gêmea, Taiwo. E em Uidá, onde pensavam estabelecer morada e fincar suas raízes depois de presenciarem a violência do assassinato de sua mãe e seu irmão mais velho, foram sequestradas e traficadas como escravizadas para o Brasil.
Talvez no Brasil do século XXI, algumas pessoas ainda não sabem como funcionava o tráfico de escravizados e como eram os navios negreiros. Talvez no século XXI muita gente ainda finja não saber como tudo aconteceu até a promulgação da lei que proibia o tráfico de escravizados, isso em 7 de novembro de 1831. Tráfico esse que continuou a acontecer na “surdina” como dizemos por aqui. Ilegalmente, negros africanos continuaram a ser escravizados e trazidos do Atlântico, e jogados ao mar, quando os navios negreiros eram interceptados.
E, assim, muitos negros não sobreviviam. Não sobreviviam também na travessia, pela fome, pela doença, pela falta de higiene, assassinados, amontoados no porão de um navio fétido. E nesse cenário desumano, a avó e Taiwo morreram sem direito a uma despedida digna e dentro das tradições, afinal, Taiwo e Kehinde eram Ibejis.
Bem, na primeira linha desta resenha, já deveria ter escrito que não se trata de um romance que esconde ou disfarça as mazelas do que foi vivido pelos negros escravizados no Brasil. Pelo contrário, a autora, Ana Maria Gonçalves, escreveu um livro de ficção que não nos poupa dos acontecimentos reais e se baseia em várias referências históricas. Foram cinco anos de escrita: sendo dois anos de pesquisa, um ano para escrita e mais dois anos para reescrita e revisão.
No Brasil
Após a trágica travessia, Kehinde foi desembarcada em Ilha dos Frades (Bahia) e viveu dias de uma paz que achou que seria duradoura, mas não passava de uma artimanha dos traficantes de escravizados: melhorar a aparência física dos recém-chegados para parecerem saudáveis na hora da venda. Mas antes de desembarcar, todos os negros eram batizados, catolicizados, com outros nomes para não contaminar o novo mundo com as religiões “pagãs” dos negros. Obrigação que Kehinde conseguiu se desvencilhar, mas passou a ter o nome de Luiza.
A partir daí, Kehinde/Luiza inicia sua jornada no Brasil do século XIX, vivenciado a violência e o desprezo dos brancos, incluindo o clero, a todos os negros escravizados.
Primeiro, Kehinde foi comprada e levada a uma fazenda na Ilha de Itaparica (Bahia), onde passou a ser acompanhante da Sinhazinha Maria Clara. Uma companhia que acabou se tornando uma grande amizade. Mas ela despertou também o ódio da Sinhá e sofreu toda a violência imposta pelo Senhor da casa, que aplicou a ela e a seu primeiro amor a mais cruel e aterrorizante bestialidade antes de morrer.
Com a morte do senhor, Kehinde e outros escravizados foram transferidos para Salvador (Bahia), onde ela pode mostrar, apesar das privações, todo o seu lado empreendedor. Ela era uma empreendedora nata e por onde passou, criou formas de ganhar dinheiro pra si e para ajudar outros negros, deixando uma marca para aqueles que a conheceram. Tanto que conseguiu comprar sua carta de alforria e tornar-se liberta.
E foi durante o processo como empreendedora, que ela conheceu muitos negros muçulmanos, e começou também a entender e discutir política e a libertação dos negros. Neste momento, a autora narra conflitos reais que aconteceram na Bahia, como a Revolta dos Malês (1835), que deixou centenas de pessoas mortas e outras feridas, quando os negros muçurumins tentaram a sua libertação. A revolta impôs a proibição de entrada de negros escravizados ou libertos da Bahia em outras províncias, como no Rio de Janeiro.
Outra revolta acontecida na Bahia narrada no livro é a Revolta da Cemiterada (1836), da qual Kehinde também participou, ainda não estando tão envolvida quanto na Revolta dos Malês. A Cemiterada aconteceu em 1836, quando a população destruiu o Cemitério do Campo Santo, em Salvador. Como moradora da Bahia, já passei por alguns lugares narrados por Kehinde e fico sempre imaginando quantos negros escravizados passaram por esses mesmos lugares.
Mas além do dom para o comércio, empreendedorismo e envolvimento com política, Kehinde busca aprender mais com os outros negros escravizados ou libertos sobre sua religião, o Vodum. Ela passa uma temporada no Maranhão e lá aprende sobre o Tambor de Mina, uma tradição até hoje celebrada no estado. E, pouco tempo depois de retornar à Bahia, decide se instalar num terreiro em Cachoeira (Bahia) pra aprender sobre o culto, deixando seu filho com amigos em Salvador, quando o garoto acaba desaparecendo.
Kehinde traça uma nova jornada que passa pelas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Campinas na tentativa de encontrar o filho que foi vendido, apesar de ser liberto.
De volta à África
Depois de muita luta e de se tornar uma mulher rica, Kehinde retorna para a África, acreditando que é um lugar melhor. E ela muda a vida de centenas de pessoas e a própria cultura do local, incluindo tradições aprendidas no Brasil, até mesmo na arquitetura da cidade de Uidá.
São também referências históricas narradas em forma de romance, pois os retornados ao Continente Africano eram todos conhecidos como brasileiros e seus costumes não agradavam muito aos nativos. Mesmo os filhos desses brasileiros nascidos já no Continente Africano eram chamados brasileiros.
Sem mais spoilers, é preciso ler esse livro pra fazer um resgate de todo o horror que foi a escravidão no Brasil. Pra compreender o processo histórico de libertação, que não ocorreu com a pena da Princesa Isabel (1846-1921). Pra entender como os negros retornados ao Atlântico se sentiam em relação à vivência no Brasil. Pra compreender como uma mulher como Kehinde se tornou uma Sinhá ao retornar à África.
Um Defeito de Cor deve ser lido e relido, deve-se ouvir a voz da velha Kehinde nos contando tudo que viveu. Dos amores e das dores. Falando abertamente de sua sexualidade sem pudores. Nos contando do quão rica se tornou na África, mas ainda assim, nunca desistiu de encontrar seu filho perdido.
Sobre a autora
Ana Maria Gonçalves é mineira, nascida em 13 de fevereiro de 1970, na cidade de Ibiá (Minas Gerais). A paixão pela leitura surgiu ainda quando pequena, pois lia jornais, revistas e livros. A escritora começou a escrever contos e poemas durante sua adolescência, mas não chegou a publicá-los. Trabalhou como publicitária até 2002, quando decidiu ir morar em Itaparica (Bahia), o que resultou na escrita de seu primeiro livro Ao lado e à margem do que sentes por mim (2002). Ana Maria recebeu o Prêmio Casa de las Américas (2007) e, desde dezembro de 2016, é colunista sobre assuntos culturais, raciais e políticos do jornal The Intercept Brasil.
Ficha técnica
Um Defeito de Cor
Autora: Ana Maria Gonçalves
Data da primeira publicação: 2006
Gênero: Ficção
Idioma original: Português
Número de páginas: 952
Onde achar: Estante virtual, Amazon, Magazine Luiza e Submarino
Foto de capa: Divulgação.
LEIA TAMBÉM: Uma análise sobre Casta: as origens de nosso mal-estar
Ouça o episódio #14 – Por uma sociedade sem manicômios:
Apoie a mídia negra nordestina: Financie o Negrê aqui!
Formada em Jornalismo e com especialização em mídias digitais, a baiana tem dedicado sua carreira ao mercado audiovisual há oito anos, quando iniciou na área. Já atuou como produtora executiva em obras para a televisão e em diversas funções dentro da produção de uma obra. Apaixonada por filmes e séries, se considera uma viciada que assiste mais de seis obras por semana.