Escrita Negra

“Todos os meus namorados já morreram, menos o Adolfo”

Em 1959, Maria tinha um namorado que se chamava Adolfo. Ela tinha 20 anos na época e me contou que gostava muito muito dele. Pela forma como ela falava, parecia mesmo que havia tido um grande afeto por este homem que passou pela sua vida. Ambos, moravam em Paracuru, uma cidade do litoral oeste aqui do Ceará.

Ela lembra que ouviu de uma das suas irmãs que estava “querendo sujar o sangue da família delas” já que Adolfo era um “nêgo”. A essa altura, todas ou quase todas as irmãs de Maria namoravam ou haviam se casado com homens brancos na região. Maria e Adolfo são negros. Alguns irmãos e irmãs de Maria são negros, outros são brancos. Maria me contou também que Adolfo já tinha comprado as alianças, pois queria se casar com ela.

Cabe aqui dizer que, naquela época da juventude de Maria, pelos anos 50, percebemos a desaprovação, a discriminação e o racismo dentro do seio familiar quando uma irmã fala para outra irmã sobre “sujar o sangue da família”. Tudo isso porque o namorado (talvez futuro marido) de Maria era negro. E tão negro tanto quanto ela. Não era permitido, nem aprovado muito menos bem visto a afeição entre pessoas pretas…

Dito isto… Maria, então, tomou a decisão de que ia vim morar em Fortaleza, Capital do Estado do Ceará. Tentar a vida aqui, buscar oportunidades para sobreviver, como é a realidade de muitas pessoas que vem do interior para as capitais. Primeiro, trabalhou como empregada doméstica. Depois, juntou um dinheiro, e fez um curso de corte e costura. Sua profissão, então, se tornou de costureira. É costureira há 60 anos.

Quando já estava morando e construindo sua vida na Capital, Maria iniciou um relacionamento com um homem branco e rico. “Dono de uns terrenos ali onde ficava a Esmaltec“, disse ela. A Esmaltec era uma empresa localizada no bairro da Barra do Ceará, aqui em Fortaleza. O novo namorado tinha posses.

Apesar de escrever pouco, como sempre relatou pra mim, por meio de uma carta, Maria disse que decidiu “fazer a besteira” de contar para Adolfo que estava com outro, que não o queria mais nem voltaria mais a morar em Paracuru. Assim, ela terminou com Adolfo, por meio de uma carta. Ela tomou essa decisão, mesmo ainda gostando de Adolfo e não gostando do atual namorado. “Eu fiz essa besteira”, disse.

Adolfo não sabia ler. E, na suposição de Maria, ele, provavelmente, pediu para que alguém lesse a carta. Ela pensa também que a pessoa que leu a carta deve ter “rido da cara de Adolfo” depois da notícia que Maria contou para ele por meio da carta. E não, ele não respondeu com nenhuma carta para Maria. Ficou por isso mesmo…

Maria contou que Adolfo era bem preto e que, se tivesse casado com ele, os filhos teriam nascido todos bem pretinhos. Mas Adolfo, que havia ficado no interior, casou-se com uma mulher branca. Teve uns 10 filhos com essa mulher (que era sua amiga na época que morava lá, inclusive). “E acredita que saíram todos pretos os filhos…”, falou. Maria não viu mais Adolfo. Nem quando retornou ao Paracuru para a festa de Ano Novo, ela sequer viu Adolfo novamente. “Mas ele ainda mora lá… o meu ex-amor…”, finalizou.

“Todos os meus namorados já morreram, menos o Adolfo”. Foram estas as palavras que me encorajaram a registrar essa breve história que ela decidiu me contar antes deu ir pra casa dormir. Já era mais de meia-noite do dia 27 de abril quando ouvi e tentei guardar o máximo de suas palavras para deixar esse pequeno escrito aqui.

Maria, na verdade, se chama Maria do Céu, tem 81 anos e é minha avó materna.

*Decidi escrever esse texto (e já deveria ter escrito tantos outros) para registrar uma das muitas histórias que minha avó tem me contado durante a pandemia do Covid-19 desde que voltei da África do Sul, em abril de 2020, até os dias de hoje, do mês abril de 2021.

Foto de capa: John-Mark Smith/Pexels.

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