Eu me lembro da primeira vez que cheguei a Paris como se fosse ontem. Era a última semana do verão do hemisfério norte de 2001, apenas poucos dias após os trágicos eventos que aconteceram em Manhattan, NY que, infelizmente, derrubaram aquelas duas torres.
O aeroporto estava lotado e cercado por agentes da inteligência secreta francesa Frontier Police e da americana Central Intelligence Agency (CIA) — um deles, incidentemente, me entrevistou, pois, para ele, eu era considerado suspeito (por suspeito, leia-se o único homem negro no avião que voou de Roma para Paris após embarcar no Rio de Janeiro na noite anterior). Acho que poderia dizer que estava na lista de observação da CIA por alguns minutos. Hahaha!
Foto: Chris Karidis/Unsplash.
Deslumbrado e com meus 20 e poucos anos, eu estava enamorado pela cidade. Quando eu era pequeno vivendo no Brasil, sonhava em caminhar por aquelas ruas e ruelas [pequenas ruas] parisienses, poder passear nas margens do rio Sena e usar uma boina francesa de ladinho enquanto lia Albert Camus, Simone de Beauvoir ou Jean Paul Sartre… tudo isso sentado tomando um café com um cigarro em uma das mãos.
Mas olhando para traz, vejo que essas aspirações não eram meu eu ideal. Não o eu que conheço hoje. Essas aspirações eram a ideia do homem utopico que criei na minha cabeça. Essas ideias eram eurocêntricas. Essas ideias eram ideias de branquitude.
Não há nada de errado em ser branco e isso não é sobre atacar pessoas brancas, é sobre eu reconhecer que esses sonhos eram sonhos que eu achava que deveria ter e que aprendi, desde cedo, a acreditar que eram meus.
Depois de Paris, nas últimas duas décadas, visitei outras cidades europeias: Madri, Bruxelas, Roma, Londres, Lisboa, para citar algumas.
Quando me perguntavam, para mostrar que eu estava no mesmo pé de igualdade que eles, eu dizia: “Sou da Austrália!” – quase como se fosse uma piscadinha de olho. Esse era um código para eles perceberem que eu “não sou imigrante”. Eu sabia e eles sabiam que era isso o que eu queria dizer. Estávamos todos entendidos.
A cada viagem para Europa (e eu fiz muitas), eu me sentia mais e mais distante dos europeus. Eu não queria mais ser como eles, aprendi, com o tempo e autoconhecimento, a ser apenas um visitante que observa, que aprende e ouve os sons e os silêncios que essas cidades inevitavelmente impõem.
Apesar de alguns sorrisos, os olhares que recebia nos transportes públicos e serviços que não eram prestados nos restaurantes, também me diziam muito.
Eu, rapidamente entendi, que quando visitava a Europa ou outras colônias antigas majoritariamente europeias (Estados Unidos e Nova Zelândia, por exemplo); em alguns casos, é mais difícil pra eu me integrar no população. Também sei que é difícil pra eu me misturar na Ásia, no Sul da Ásia e em algumas partes do Oriente Médio. Eu entendo.
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Ihas Fiji
Visitei recentemente as Ilhas Fiji. A segunda vez que visito um país majoritariamente melanizado. O outro foi a Jamaica, pois ainda (eu vou em breve – tenho certeza) visitar países da África.
O que notei foi que, embora os moradores locais soubessem que eu não era de lá. À distância, eu era.
Minhas semelhanças fenotípicas me permitiram vagar pelas ruas de Savusavu (ilha Vanua Levu), onde visitei para um casamento de um casal de amigos. Lá, eu não me senti como um estranho, mas, de alguma forma poeticamente bonita, me senti como um primo distante.
Entrei em cada ruazinha, viela e restaurante que eu encotrei. Pedi comida local e comi com a mão, fiz compras no supermercado, comi comida de rua (provei um bolo de mandioca que poderia ter sido assado pela minha mãe), visitei as casas dos moradores locais e assisti a cerimônias religiosas. Eu me senti em casa.
Eu estava vindo da Austrália, onde moro e de onde, nos últimos quinze anos, sou cidadão, mas, quando me perguntaram de onde eu era, eu disse sem gaguejar: Eu sou do Brasil.
Não que eu tenha vergonha de ser da Austrália. Eu não tenho, mas queria dizer para eles: “Eu também sou um de vocês. Tamu junto!”.
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Amigos e culturas
Eu lembro de crescer no Brasil, ouvindo as pessoas dizerem: “Eu sou italiano… ou eu sou muito europeu…”. Na Austrália, de uma forma ou de outras, eu frequentemente ouço a mesma coisa.
Então, eu pensei: “É assim que os descendentes de europeus com características brancas se sentem quando você visita cidades europeias?”. “É assim que eles se sentem quando vão para Düsseldorf (Alemanha), Leeds (Inglaterra) ou Malmö (Suécia)?”.
Pensando mais além, eu também tenho amigos japoneses, asiáticos brasileiros e australianos. Penso: “Como eles se sentem quando visitam outras nações asiáticas? Eles dizem que são brasileiros ou australianos ou falam sobre sua herança? Como é para você?”.
Quando viajamos, nosso passaporte (dependendo do passaporte e do país visitado) pode ajudar muita na hora de entrar em lugares e passar por processos mais suaves na imigração. Mas, eu acredito também, que muito de quem nós somos racialmente viaja conosco.
Pra mim, pessoalmente, para o bem e para o mal, apesar de saber quem eu sou, eu entendo que para o mundo, eu sou primeiro Guido, o homem negro viajante. Depois sou o Guido o Australiano e/ou o Guido, o Brasileiro. E hoje, eu sou honesto sobre quem eu sou e sobre o que isso significa pra mim. Isso facilita muito minhas viagens e me evita muitas surpresas.
Foto de capa: Koro Sun Resort/Divulgação.
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Negro, nordestino e radicado na Austrália desde 2003. Tem Bacharelado em Digital Mídia & Escrita e atualmente cursa o Mestrado de Pesquisa, ambos pela Victoria University, em Melbourne. Guido é um Learning Designer, poeta e escritor. Seus artigos podem ser lidos na SBS voices, Cordite Poetry, Mantissa Poetry, Alma Preta Jornalismo, Guia Negro, A Voz Limpia, Peril Magazine, RightNow, Meanjin, Overland e Ascension Magazines. Guido participou de festivals como o Emerging Writers Festival & The Melbourne Writers Festival. É escritor contribuinte da Antologia Growing Up African in Australia, lançada na Austrália pela Black Inc. em 2019 e das Antologias Racism: Stories on Fear, Hate & Bigotry (Sweatshop, 2021), Resilience: Mascara Literary Review (Ultimo Press, 2022), Povo (Sweatshop, 2024) & Handbook of Critical Whiteness | Deconstructing Dominant Discourses Across Disciplines (Springer, 2023).