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A segunda edição da Mostra OCAN e a busca por uma arte decolonial

A segunda edição da Mostra OCAN (Okan – em iorubá significa “coração”) ocorreu na última sexta-feira, 22, e contou com criações afro referenciadas em múltiplas linguagens, unindo performances com danças, teatralidades, visualidades e musicalidades.

Os coletivos Lança Cabocla e Coletiva Negrada abriram as portas de sua tenda oca okan (casa coração), e ofereceram aos visitantes a experiência de narrativas permeadas por ancestralidades e marginalização. A casa de estética retrô, com plantas no quintal e altares de adoração para os Orixás na sala, localizada no bairro do Benfica em Fortaleza (CE), é moradia de cinto artistas; em sua maioria, corpas racializadas e dissidentes de gênero, e serve como espaço de aquilombamento e integração das duas plataformas.

Sala da casa Ocan, com artifícios utilizados para a performance. Foto: Dhara Amorim.

Quando a gente se encontra em um espaço onde a gente não precisa estar a todo momento batendo em teclas da violência, e sim da criação e da vida, há uma expansão de muitos outros lugares”, afirma Pedra Preciosa, 24, idealizadora da Coletiva Negrada.

O que veio

Na performance da noite “Nutrir a Seiva da Corpa”, a Coletiva Negrada, representada por Pedra Preciosa, Dj Viúva Negra e Ilton Rodrigues, nos levou em sua jornada de afrografia da memória, conceito da poeta, pesquisadora e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Leda Maria Martins. Ela que resgata as tradições oriundas de africanos durante a colonização e a história de resistência das populações afropindorâmicas; ao incorporar na cultura dominante novos rituais e formas de pertencimento, assim sendo uma descolonização.

É uma reatualização do quilombo, por nos agrupar, nos proteger, por pensarmos formas de continuar existindo apesar da política de morte”, reitera Tieta Macau, 32, idealizadore do Lança Cabocla.

Pedra Preciosa performando “Nutrir a Seiva da Corpa”. Foto: Dhara Amorim.

Sobre as projetas, Tieta conta que a diferença entre a arte colonial e a que realiza no coletivo é que suas pesquisas são sob uma ética e uma estética associada aos percursos da ancestralidade, mas não que esse seja o tema do trabalho. “A gente tem [a ancestralidade] como corpo, como um caminho epistemológico, espiritual, de vida. Não tem como a gente pensar numa arte convencional porque o nosso convencional parte da ancestralidade”.

Colonização x Ancestralidade

É necessário reconhecer a importância que o resgate das nossas raízes e a criação de pertencimento tem para o psiquiatra e filósofo Frantz Fanon (1925-1961); formatar o sujeito colonizado e torná-lo emancipado com medidas prático-políticas de libertação. É necessário descolonizar linguagens, movimentos, percepções de corpo, tempo e espaço. Assim, nos deparamos com mais um conceito para repensar nossa existência e ocupação: a filosofia espiralar apresenta uma temporalidade que se curva para frente e para trás, ao redor e para cima; em movimentos espirais que retêm o passado como presente (ou presentifica o passado) para moldar o futuro. Já ouviu falar que o futuro é ancestral? É sobre isso!

“Registros digitais de uma travesti racializada”, começo da performance de Pedra Preciosa. Foto: Dhara Amorim.

Para o mestrando de antropologia social Paulo Ferreira, 25, as performances que já assistiu das coletivas o remeteram muito a essa perspectiva de um tempo que não é linear e sim espiralar. Um tempo que marca nossa existência enquanto corpos negros. Ele guarda um trecho da apresentação de Pedra. “Não é de onde a gente veio, mas em que momento nós estamos, em que momento nós vivemos”.

Antes da performance começar, Pedra passou incenso pela sala “na fé de Oxóssi, Ogum e Oxalá”. Foto: Dhara Amorim.

Outras linguagens

Outra atração da Mostra foi a exibição do vídeodança “Território da Paz” dirigido por Fran Córnio, 23, e Alanda Freire, 19. O projeto foi resultado do curso técnico em dança do Centro Cultural do Bom Jardim (CCBJ). Cabulosa, como Alanda é conhecida, é pesquisadora das danças negras e afrodiaspóricas. Ela fala que a existência do CCBJ já é uma ação decolonial, por estar produzindo arte em um lugar de desconforto e, ainda assim, conseguir aproveitar e trabalhar com o que gosta. “A arte decolonial vem no sentido de ir contra padrões e coisas pré-estabelecidas”.

Da esquerda para a direita: Cabulosa, Gisselly Dias, Negrita dos Cortes, Fran Córnio e Wagner Castro no projeto “Território da Paz”. Foto: Divulgação.

A Mostra Ocan ainda contou com a dança de Ruan Francisco, 26, na performance “Banda Larga e Derivados de Frutas”; através da qual ele também se identifica fugindo da linearidade, brincando com o improviso e seu estudo dos sons. Por fim, a exibição de mais um produto audiovisual, do laboratório Laborartchia e o coletivo de dança Maré House, com sua pesquisa também produto do laboratório de criação do Porto Iracema Maré Alta. “É um dispositivo festivo pra gerar alegria e injetar vida”, define Joca, 26, integrante do coletivo de dança.

Todos esses espaços são de disseminação de pluridentidades e verdadeiras encruzilhadas, e ainda nas palavras de Joca sobre a apresentação do Maré House na Mostra. “A gente encontrou no Maré Alta um dispositivo de sobrevivência. A partilha da cultura musical que transmite valores que a gente realmente acredita”.

A experiência Ocan foi uma amostra de como é revolucionário cercar-se por referências afropindorâmicas – sugestão do líder quilombola Nêgo Bispo de denominação para os povos racializados – com o intuito de descolonizar o pensamento ocidental e requalificar a África como Continente pensante, utilizando nosso corpo, nossa palavra, nossa memória e nosso tempo. 

Foto de capa: Dhara Amorim.

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