Em uma das minhas sessões de terapia, minha terapeuta me indagou: “Quando vamos falar sobre você na sessão? Nós só falamos sobre a sua relação com os outros”. Naquele momento, questionei a ela se quando falava sobre a minha relação com os outros eu não estava falando exatamente sobre mim.
Acredito muito que a nossa subjetividade se constrói a partir das relações, interações, conversas e trocas. Me fortaleço a partir do contato e vivência com os meus semelhantes. Me faço e refaço a partir deles, lugar também em que deixo um pouco de mim. É isso também que bell hooks (1952-2021) nos fala no livro “Tudo sobre o amor” (1999), no qual ela aborda a convivência e o companheirismo com almas semelhantes como fonte de crescimento espiritual.
Relembro a minha trajetória enquanto mulher negra e o meu processo de afirmação racial também nesse lugar, que me leva diretamente à lembrança do Quilombo do Batoque, em Pacujá (CE). A comunidade, que se origina a partir da resistência de um ex-escravizado, nos relembra a importância do vínculo e das relações para criar possibilidades de sobrevivência e realização da vida por parte da população negra.
“Sempre é tempo de recomeçar e, nós (pretxs) somos experts nisso”
Aline Wirley
Aquilombamento
O contexto de escravização e a violência da existência e subjetividade de pessoas pretas fez com que o nosso povo criasse inúmeras estratégias, expressas, principalmente, na dimensão corporal: as danças, os cantos, a religião, bem como a construção de espaços separados do âmbito servil/escravista. Isso para ir contra às opressões que a sociedade colonial trazia.
Conforme Beatriz Nascimento (2006), o quilombo é uma das grandes expressões da identidade negra, da resistência, e da organização. A ideia de Quilombo inicialmente não teria surgimento no Brasil, mas em África, mais específico em Angola, com a invasão de portugueses àquele território. Entretanto, no nosso País, esse espaço se tornou um grande aliado à luta antiescravista, símbolo de resistência e se apresentava como uma outra forma de sociabilidade.
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Encontro
Para além da resistência, quilombo também significa afeto, cuidado e acolhimento. Traduzem e explicam muito na contemporaneidade sobre lutas, expressões de identidades negras e viabilização de existência. A defesa e proteção, que muitas vezes foram vistas como hostilidade, são estratégias de segurança que rompem com a expectativa de um sistema que nos quer submissos em todos os espaços.
O contato com a realidade do quilombo e outros espaços de encontro com mulheres negras (Rede de Mulheres Negras do Ceará*) que integro atualmente, me reafirma que as relações constituem parte importante da formação dos sujeitos. Me relembra sobre continuidade. Isso não quer dizer sobre desrespeitar nossos momentos individuais e de recolhimento, mas reconhecer as relações também como espaço de abertura, expansão e (re)construção de si a partir do encontro, especialmente quando pensamos em pessoas pretes**.
“Que seja possível o afeto aos meus iguais”
Carol Dall Farra
No fim das contas, seremos lembrados pelo o que fizemos, pelo o que deixamos no outro. Não importa o quão bem preparado eu seja, o quão inteligente, ou as diversas pós-graduações e artigos que publiquei: se isso morre em mim, finda. Somos parte dos outros e seremos tantas outras partes a partir das conexões que fazemos.
Assim, nos eternizaremos.
Referências
HOOKS, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Elefante, 2020.
NASCIMENTO, Beatriz. O conceito de Quilombo e a Resistência Cultural Negra. In: RATTS, Alex. Eu Sou Atlântica – sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial (SP) e Instituto Kuanza, 2006.
*Conheça o trabalho da Rede de Mulheres Negras do Ceará aqui.
**Uso da linguagem inclusiva: o Negrê opta por usar o “e” para neutralizar o gênero da palavra e incluir àqueles que não se identificam com feminino ou masculino.
Foto de capa: Lucxama Sylvain/Pexels.
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Mulher-preta-cearense, filha de Maria do Carmo. Assistente Social e mestra em Sociologia, ambos pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). É pesquisadora e especialista em Legislação Social, Políticas Públicas e Trabalho Social (Pótere Social). Encantada pela escrita e movida a expressar mundos através das palavras. Curiosa e pesquisadora, principalmente, nos seguintes temas: juventudes, raça, arte, violência, sistema socioeducativo e questão urbana. Cursa o Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).