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A voz de Mãinha!

Alguns anos atrás, lendo uma autobiografia, lembro-me de uma passagem que ficou na minha memória. Nela, o autor expressa profundo pesar por não ter gravado a voz de sua falecida mãe. Recentemente, ouvindo o podcast Invisibilia, o comediante Cord Jefferson conta comoventemente que guardou as mensagens de voz deixadas por sua mãe antes de falecer.

Motivado pelo poder da voz, pouco antes de meu pai sucumbir ao câncer, comprei um aplicativo que grava ligações telefônicas e registrei algumas de nossas conversas. Depois de saber que não haveria tempo de sair da Austrália para uma visita ao Hospital da Aeronáutica, na Ilha do Governador (RJ), tive mais convicção de que precisava salvar sua voz. Lembro-me que ele disse: “O show tem que continuar”. Mesmo com todo o Oceano Pacífico nos separando, eu balancei a cabeça concordando. A essa altura, ele estava doente demais para falar com coerência. Sua voz, então frágil, não dizia muito. Mesmo assim, ainda as guardo com carinho, pois essa é a única maneira de ouví-lo falar comigo hoje.

No ano passado, no início da pandemia do Covid-19 e com a perspectiva de contrair um vírus potencialmente mortal, decidi não repetir o mesmo erro que cometi com meu pai. Assumi a corajosa tarefa de registrar e transcrever toda a história de minha mãe até antes do meu nascimento. O motivo de eu ter escolhido esse período é simples: eu sou uma testemunha viva dos eventos pós-1976 e, como eu disse a ela, o resto da história conto eu.

Dona Rosa vai todos os anos à Melbourne (Austrália) visitar o filho. Foto: Arquivo pessoal.

Até agora, eu transcrevi mais de 15 mil palavras sobre a vida da minha mãe. Desde histórias modestas sobre como ela não tinha dinheiro para ir à escola e andava descalça, até como quase se afogou ao brincar com outras crianças em um açude no interior da Bahia.

Como já era de se esperar, fiquei abalado ao ouvir sobre a vida de uma senhora de 70 anos que veio de uma quase-tribo no agreste baiano, criando cinco filhos entre Salvador (BA) e Rio de Janeiro (RJ). Ainda assim, nada me abalou mais do que a percepção de que nossas histórias tragicamente se repetiam.

Em virtude da diferença de fuso entre Melbourne (Austrália) e Rio de Janeiro (Brasil), decidimos fazer a cápsula do tempo via whatsapp. Cada história me surpreendia ou confirmava fatos sabidos e imaginados. Histórias mirabolantes como quando ela me contou rindo que descobriu que estava grávida de mim após uma aula de capoeira. Aos oito anos, minha mãe foi roubada e forçada a trabalhar como servidão contratada. Talvez pela situação miserável, talvez por manipulação, minha avó foi persuadida por uma família branca a levar minha mãe para uma cidade maior. 

Essa prática de adoção de crianças, foi incentivada e difundida pelas elites brasileiras que no pós-escravidão queriam continuar vivendo com as mordomias do senhor de engenho. O argumento deles para manter esse hábito era que eles educariam as crianças e as “civilizariam” nas cidades. Assim dando às crianças da zona rural uma chance melhor de futuro. Na realidade, porém, isso serviu para aliviar as elites brancas de sua culpa pela extrema desigualdade social no começo do século XX. No sentido econômico, era mais uma forma de manter a oferta de mão de obra gratuita para as famílias brancas que detinham o poder. Sem dúvidas, muitas dessas crianças certamente foram abusadas e exploradas sexualmente. De uma forma ou de outra, essas práticas infelizmente ainda ocorrem no Brasil de hoje. 

Ainda lembro do meu primeiro encontro com a polícia. Eu tinha uns 11 anos e minha mãe acabara de raspar a minha cabeça. Eu estava me sentindo lindo! O PM chegou dirigindo devagar num Opalão azul e branco da Chevrolet:

– “Ei muleque, você faz parte de qual gangue?”.
– “Que isso? Eu? Gang?”, retruquei.
– “Por que todos vocês tão tudo de cabeça raspada então? Tamo de olho em vocês! Cuidado pra não acordar com a boca cheia de formiga mané”, ele disse antes de pisar do acelerador.

Minha garganta secou, abaixei a cabeça e segui meu rumo.

Depois disso, toda vez que via o Opalão, ficava extremamente ansioso. Nunca contei isso para minha família. Esse é um dos problemas do racismo. Instintivamente, eu sabia que contar aos meus pais não nos ajudaria em nada. Eles iriam se sentir tão impotentes quanto eu. Eu pensava: “Por que fazer minha mãe e meu pai sofrerem ainda mais?”. Aprendi cedo na vida que, contra o racismo, não há defesas e que a maioria das dores terminam sendo suportadas sozinho.

Aqui na Austrália, a cientista social aborígene Chelsea Bonds argumenta que “os povos aborígines [em seus encontros com a polícia] são constantemente acusados falsamente de agredir funcionários públicos”. Existe um fenômeno racista mundial em que a opressão sistemática de negros/africanos/indígenas que ocorre quando lidamos com o estado que, na maioria das vezes para pessoas como nós, é representado apenas pela polícia.

Não me surpreendeu quando minha mãe me disse que enfrentou opressão e assédio enquanto crescia. Minha mãe já havia morado em muitas casas, sempre como faxineira, vivendo numa situação que poderíamos chamar de cárcere privado. Depois de muito sofrimento, ela acabou fugindo (com a ajuda da família branca que a levaria a Salvador) do vilarejo em que morava para a capital baiana. 

Já em Salvador (BA), minha mãe morava na casa dessa família que, de acordo com ela, a tratavam muito bem. “Eles foram legais e me trataram como uma família e me deixavam sair quando eu queria”. Ela lembra. Quando esta família se mudou para Recife (PE) a trabalho, ela foi forçada se mudar com uma nova família branca. Dessa vez, fazendo os mesmos serviços, porém, com mais pressão e menos liberdade.

Novamente, seus serviços eram em troca de alimentação e de um teto. A nova família era formada por três membros: um patriarca que trabalhava como policial de alta patente, uma dona de casa servil e um filho viciado em cocaína.

O chefe da família costumava viajar à trabalho constantemente e não demorou muito para que o playboy percebesse que poderia escapar impune se decidisse furtar de seus próprios pais. “Culpe a empregada negrinha”, ele dever ter pensado.

Eu tinha 23 anos quando fui indiciado ilegalmente por policiais armados num tribunal de rua. A empresa para a qual eu trabalhava me acusou de um roubo mirabolante no estilo da série Lupin (2021). Sem nenhum processo devido, fui colocado em uma sala de interrogatório que mais parecia uma masmorra de tortura. Fui questionado por horas a ponto de duvidar da minha própria sanidade. Sofri o que hoje chamamos de gaslighting [tipo de abuso psicológico no qual informações e fatos são distorcidos, seletivamente omitidos para beneficiar o abusador], chegando a acreditar que talvez eu estivesse de fato algum envolvimento no roubo.

Os donos da loja (brancos) estavam inflexíveis e tinham total certeza de que eu era o culpado. No entanto, por causa da falta de provas, acabei sendo dispensado. Anos mais tarde, depois de várias sessões terapêuticas na Austrália, compreendi que tinha adquirido Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) por causa daquele evento. Só depois de me mudar do Brasil, dois anos depois do ocorrido, deixei de ter medo de ser assassinado por ‘capangas’. Na época, eu trabalhava como técnico em Computação e tinha medo de ir a lugares desconhecidos e de atender novos clientes.

Depois de ser falsamente acusada pelo playboy, minha mãe acreditava fielmente que a verdade prevaleceria. A mãe do garoto, porém, se deparou com duas escolhas: lidar com os próprios fracassos da família ou culpar a “negrinha”. Não surpreendentemente, ela escolheu a segunda opção. Minha mãe foi levada para a delegacia e teve que dormir três noites na prisão, somente sendo libertada quando o patriarca voltou e repreendeu seu filho. Até hoje, ela tem vergonha de ter sido presa, embora injustamente. 

Uma geração separa esses encontros perturbadoramente semelhantes com a polícia. É claro que essa história aconteceu com um hiato de três décadas mostra como as relações raciais brasileiras não evoluíram tão rápido quanto deveriam. Como Chimamanda coloca em sua famosa palestra TEDx “O perigo de uma única história”. Precisamos de outras vozes. Precisamos contar nosso lado do passado. A história do Brasil é também a história negra do Brasil e ninguém melhor para contar essa história do que nós mesmos! Compartilho a voz de minha mãe porque sua história precisa ser contada, mas de forma mais ampla, considero que a sabedoria que ela adquiriu pode ajudar as gerações futuras a elucidar o nosso passado coletivo. 

A opressão diz mais sobre os opressores do que sobre os oprimidos. Após anos de leituras e aprendizados, constato que existe e sempre existiu opressão de povos dominantes contra minorias no mundo. Sinto profunda empatia por suas resistências onde quer que elas ocorram. Eu reconheço as ferramentas de opressão pois elas são sempre as mesmas. Desumanização, marginalização e a suposta superioridade do grupo dominante. É hora de ouvir novas vozes. Somente por meio de nossas vozes, vamos construir narrativas contra-hegemônicas e ajudar a moldar um futuro mais justo para toda a humanidade.

Foto de capa: Arquivo pessoal.

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