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A luta anticolonial em Angola: o antagonismo da Guerra Fria sob uma perspectiva africana

Durante todo o século XX, os povos africanos reagiram de diversas formas à dominação imposta pela Europa no Continente Africano. Essas reações nem sempre tiveram como norte planos bem definidos ou mesmo ideologias anticoloniais, mas eram expressões nítidas da luta de classes nesses países.

A opressão e a exploração intensamente colocadas se traduziam, nos povos oprimidos e explorados, em luta e resistência. Como é colocado na abertura do documentário Décolonizations: “A descolonização começou no primeiro dia da colonização”.

Em Angola, assim como em diversos outros países de África, a descolonização ocorreu no contexto da Guerra Fria (1947-1991). Locus da disputa entre os interesses antagônicos dos dois blocos (o socialista soviético, da URSS, e o capitalista, encabeçado pelos EUA), a luta pela Independência foi fortemente influenciada por essa cizânia global.

Entretanto, a postura adotada não envolveu o alinhamento automático e acrítico a nenhum dos blocos. Pelo contrário, o que se desenhou foi uma perspectiva anticolonial que, antes de qualquer coisa, colocava os interesses africanos em primeiro lugar. É sobre isso que falaremos nesta sexta-feira, 11, em alusão ao dia de conquista da Independência de Angola, país localizado na região Central da África Austral.

Luanda, capital de Angola. Foto: Eryxson Fonseca/Unsplash.

Colonialismo em Angola: a primeira violência da presença europeia

O comércio transatlântico de escravizados sequestrou um número elevadíssimo de africanos para o trabalho forçado nas Américas e em outras partes do mundo. Angola esteve inserida no complexo mercado do tráfico de escravizados desde os primeiros momentos da colonização.

Por mais de três séculos, Angola foi um do principais pontos de retirada de negros cativos, em um mercado que desestruturou sociedades inteiras, desarranjou a forma tradicional de relação dos diferentes povos que habitavam o Continente e desenvolveu entre eles um estado quase permanente de guerra em nome do lucro e dos interesses europeus.

As descobertas do projeto “Rota dos Escravos”, conduzido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), mostra que o comércio transatlântico de escravizados em Angola é um dos mais antigos do mundo. Os portugueses já estavam presentes na região desde o século XVI. Espanhóis, franceses, holandeses e ingleses também disputaram o domínio sobre os postos comerciais do norte de Angola, na região de Cabinda. De lá, saíram milhares (talvez milhões) dos homens e mulheres que foram escravizados no Brasil.

Reinos inteiros engajaram e enriqueceram nesse comércio, vendendo prisioneiros de guerra de povos rivais para os brancos europeus. Essa dinâmica acirrou rivalidades internas e criou um cenário permanente de guerra, que, por vezes, resultou no desaparecimento de um cem número de povos. Em Angola, isso se estendeu do início da colonização, no século XVI, até o fim do tráfico legalizado de escravizados, no século XVIII.

Ndongo, Matamba e Kajensse são três reinos que, em Angola, tiveram forte participação no tráfico de escravizados. Enquanto Matamba é exemplo de um povo que enriqueceu vendendo seus irmãos, Ndongo figura na face oposta, como um reino que se decompôs.

Esse enriquecimento “às custas” de riquezas provenientes da Europa foi, séculos depois, durante o neocolonialismo do século XIX, usado pelos brancos como chantagem. O argumento de “vocês enriqueceram graças a nós” foi muitas vezes utilizados nas ameaças que o branco levava aos africanos para tomar posse de suas terras.

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Neocolonialismo em Angola: a segunda violência da presença europeia

Mais tarde, já no século XIX, a Segunda Revolução Industrial e o surgimento dos nacionalismos na Europa levou à África uma nova roupagem da violência colonial. O neocolonialismo fez morada no Continente Africano, dividindo-o entre as potências europeias ao gosto do branco e arrancando do solo não mais a sua gente, mas os seus recursos.

Se antes sequestravam africanos para escravizá-los do outro lado do mundo, agora os escravizavam em sua própria terra. A nova dinâmica da exploração visava matar a sede e a fome das novas máquinas por petróleo, carvão e ferro – recursos abundantes no Continente.

O antigo entreposto comercial de onde partiram milhões de africanos escravizados era agora o destino mesmo da colonização. A África, seus solos, seus recursos, suas riquezas e suas gentes eram propriedades europeias.

Nesse contexto, Angola se tornou, após a Conferência de Berlim (1885), propriedade de Portugal. A Independência só viria 90 anos mais tarde, após um longo processo de amadurecimento da luta anticolonial dentro do Continente Africano e em um contexto de vitórias socialistas na Europa, especialmente no país que imputava à Angola a violência da dominação.

O anticolonialismo no Continente Africano

Revoltas sociais, movimentos religiosos, organização de partidos e sindicatos mais organizados… muitas foram as manifestações da insatisfação em relação à presença do europeu em toda a África.

A dominação, imposta quase sempre por uma violência visceral e sustentada por uma complexa teia de exploração dos recursos humanos e naturais, tinha um custo: a convivência com um clima ininterrupto de tensão constante. As revoltas eclodiam por motivos diversos. Impostos, condições de trabalho, leis que oprimiam povos específicos… qualquer coisa da ordem do dia podia resultar em pequenas insurreições.

Esses movimentos, contudo, carentes de uma doutrina política anticolonial mais ampla, eram quase sempre localizados. Eles expressavam a insatisfação com questões do dia a dia, mas raramente colocavam em questão o funcionamento global do sistema de exploração colonial.

Nesse sentido, não se pode escapar das duas guerras mundiais em termos do impacto que tiveram para os africanos que participaram delas. Bem como não se deve ocultar como a Guerra Fria transformou as reivindicações, especialmente nos lugares que foram apoiados pela URSS.

A influência política, o apoio logístico e a aproximação do bloco soviético produziu um cenário favorável ao desenvolvimento de uma luta pela Independência pautada por uma teoria revolucionária e anticolonial, da qual herdamos pensadores importantes, como Aimé Césaire (1913-2008) e Franz Fanon (1925-1961).

O marxismo acrescentou às insatisfações já existentes aquilo que lhes faltava: a perspectiva global e estrutural do sistema de exploração que a Europa impunha ao Continente Africano.

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A Ditadura Salazarista em Portugal e a luta pela Independência em Angola: os socialistas ao lado do povo e da luta anticolonial

Foi nesse cenário de vitórias socialistas no mundo e de aproximação entre os soviéticos às lutas anticoloniais, somada à derrubada do fascismo em Portugal, que Angola conquistou sua Independência.

A burguesia e o governo portugueses resistiram enquanto puderam às independências que já se desenrolavam havia décadas no Continente Africano. Com a chegada do governo fascista de António de Oliveira Salazar (1889-1970), em Portugal, a dominação e a violência portuguesas no Continente tomaram rumos mais profundos.

Durante a ditadura salazarista (1932-1974), as colônias portuguesas em África viveram o seu período mais duro e violento. Alguns historiadores afirmam, inclusive, que a dominação portuguesa durante a ditadura constituiu “uma das faces mais conservadoras do colonialismo europeu”.

Desde 1922, diversos movimentos de libertação eclodiram em várias regiões africanas sob o domínio português. Durante as décadas de 1960 e 1970, por exemplo, uma das principais tarefas da diplomacia portuguesa era defender seus interesses de manutenção da colonização junto à Organização das Nações Unidas (ONU) e aos países-membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

Simultaneamente, Portugal enviava às suas colônias forças militares para reprimir violentamente os movimentos guerrilheiros que se organizavam em nome da Independência. Angola foi palco de disputas sangrentas entre os soldados portugueses e as duas maiores forças independentistas, a Frente Nacional para a Libertação de Angola (FNLA) e o Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA).

A ilha de São Tomé, a maior do arquipélago de São Tomé e Príncipe, foi utilizada de penitenciária para enclausurar os presos políticos que lutavam pela liberdade africana. Ao mesmo tempo, mais de 140 mil soldados foram enviados para a Guerra da África, armados com metralhadoras, aviões e outros equipamentos modernos. A ordem era evidente: conter os movimentos que lutavam pelaIindependência a todo custo, mesmo que isso significasse a morte das pessoas que deles participavam.

Foi a Revolução dos Cravos em 25 de abril de 1974, em Portugal, na qual jovens oficiais das forças armadas derrubaram a ditadura fascista iniciada por Salazar, que abriu a real possibilidade de libertação do país. Entre esses jovens, a palavra de ordem era: “Democracia em nosso país, descolonização na África”.

Angola após a descolonização

Quando se observa o cenário geral do Continente Africano, percebe-se que ditaduras militares foram a regra dos regimes instalado nos países após as descolonizações. Essas ditaduras contavam com o apoio dos EUA ou da URSS, visto que África se tornou um centro da disputa entre os antagônicos interesses da Guerra Fria.

Esse embate entre Capitalismo x Socialismo foi sentido em todos os territórios disputados por grupos armados africanos. E, talvez, Angola seja um dos lugares em que se pode perceber essa luta de interesses de maneira mais duradoura.

Após a Independência, em 11 de novembro de 1975, o governo passou a ser controlado pelo MPLA, vinculado à União Soviética e ao socialismo internacionalista. O Movimento Popular, entretanto, teve sua legitimidade questionada desde o início pela União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) e pela FNLA, que se associavam aos interesses do bloco capitalista, liderado pelos EUA. A imensa disponibilidade de recursos minerais e petróleo em Angola chamava a atenção das potências mundiais – e até mesmo de potências emergentes, como era o caso da África do Sul.

Nesse cenário, o que se desenha é um apoio militar, financeiro e técnico de potências externas aos movimentos locais vinculados aos seus interesses. A URSS com o MPLA, os EUA com a FNLA e a África do Sul com a UNITA.

Enquanto o MPLA buscava construir o socialismo em Angola, buscando recursos técnicos e humanos na URSS e, principalmente em Cuba, os EUA financiavam a FNLA para tensionar o cenário político angolano. Ao sul, a UNITA recebia o mesmo tipo de apoio da África do Sul para invadir o território angolano.

Esse quadro complexo levou aos conflitos sangrentos entre as tropas do governo de Angola e as tropas dissidentes da UNITA e da África do Sul. Embora o MPLA tenha conseguido a vitória sobre a África do Sul, a guerra civil contra a UNITAse estendeu até 2002, quando Jonas Savimbi ((1934-2002), líder político dessa união, foi morto.

O socialismo africano: uma nova perspectiva

Angola, assim como diversos países do Continente Africano, conquistou sua Independência pelas mãos de socialistas (sejam eles locais ou atuando nas metrópoles coloniais) e com o apoio da União Soviética. A influência de uma luta popular, internacionalista e orientada pelo desejo de desmonte do capitalismo exerceu um papel fundamental nas independências africanas.

No campo da teoria marxista, o contato entre os que lutavam pela independência dos países africanos em relação à Europa e os que lutavam pelo fim da exploração dos trabalhadores no centro do capitalismo produziu avanços significativos para ambas as partes.

De um lado, o marxismo enquanto forma de ler e interpretar o mundo, forneceu as bases para a percepção que ia além das pautas imediatas de condição de vida. Nesse sentido, trouxe a possibilidade de compreensão do neocolonialismo dentro de uma perspectiva estrutural e totalizante, fazendo entender materialmente o papel que a violência e as péssimas condições de vida tinham dentro de uma estrutura global de exploração.

De outro lado, a própria observação das dinâmicas internas da colonização trouxe aos socialistas a urgência de introduzir o anticolonialismo nos estudos, nas análises e nas pautas – ampliando e desenvolvendo os apontamentos que o próprio Karl Marx (1818-1883) já havia feito nos anos finais de sua vida. Desse choque de realidades e interpretações delas, Aimé Césaire e Franz Fanon sejam talvez os nomes que mais se destacam entre os que produziram trabalhos importantes acerca do tema.

Na realidade prática, entretanto, o mais interessante é observar como se consolidou a aproximação entre africanos e socialistas europeus após as descolonizações. A despeito do apoio da URSS, a relativa aderência ao projeto socialista não se deu de maneira tão evidente.

Os anos de dominação branca no Continente, sobre a qual pouca coisa fez a Liga das Nações, produziu em África – inclusive entre as suas elites – uma consciência africana de contestação severa aos brancos e ao Colonialismo. É nesse contexto, por exemplo, que surge a corrente teórica do Pan-africanismo, que alimentava, na década de 1920, o mito de retorno à Mãe-África, num contexto de valorização e união da “raça negra” a partir de uma perspectiva de negação e não-participação no “mundo dos brancos”.

Assim, quando das descolonizações, mesmo nos países em que se instalaram governos socialistas, internacionalmente a posição era de neutralidade. Mesmo com o apoio da URSS, o objetivo, antes de qualquer coisa, era unir o Continente Africano, fortalecer os povos de África. Somente após isso poder-se-ia pensar a inclusão de uma África forte num cenário global.

É essa característica do desenvolvimento de uma consciência de povo (maior que a consciência de ‘nação’, que vigorava no século XX), que se impõe em relação a interesses globais, que marca a política da África descolonizada. Seria, nesses casos, talvez, um outro tipo de marxismo: este que se sedimenta sobre uma consciência africana, que valoriza a ancestralidade e que tenta se valer do nosso fortalecimento enquanto povo para se fazer efetivamente revolucionário. Seria este o socialismo africano?

Foto de capa: Aboodi Vesakaran/Pexels.

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