É extremamente reconfortante sentar numa cadeira enquanto outra mulher preta trança seu cabelo, sem violência, com cuidado. Uma troca que envolve afeto, conversas sobre a importância do nosso cabelo, sobre autoestima, nossas vidas e tudo mais que significa ser preta.
Há algum tempo me peguei refletindo sobre a ideia que associa beleza, procedimentos estéticos e sofrimento. E à falta de cuidado e violência que estamos acostumadas enquanto corpos pretos. Meu interesse em estudar sobre assuntos relacionados à cabelos crespos vem desde cedo quando passei a cuidar do meu próprio cabelo. Desde adolescente, não frequento salões de beleza por ter escutado que meu cabelo só teria jeito se fosse alisado e, cansada de todo o trauma e dor das experiências alisantes, estudei (e muito) pra aprender a cuidar sozinha.
Mais adulta, ter um pezinho na área da saúde também ajudou a ter um pouco mais de cuidado e evitar o que pudesse me fazer mal. Quando passei a utilizar penteados como tranças, me entristeceu perceber e analisar como, em geral, a ideia do cuidado, beleza e toque direcionado à cabelos crespos envolve muita dor e violência.
Meu cabelo 4a-b, é crespo, fino, faz muito nós. Desde que comecei a trançar, além da dor física, sinto uma dor profunda quando escuto – e sinto – a perpetuação da ideia da dor como meio-consequência de cuidados e beleza aos fios crespos. Penso nisso como um reforço e reflexo da ideia de que o toque que merecemos, quando merecemos, são aqueles mais brutais.
Não existe delicadeza e carinho ao tocar em nossos cabelos crespos, não há toque da mesma forma que toca-se em fios lisos ou aqueles mais próximos desse padrão. Não existe paciência pra desembaraçar, massagear, prender com cuidado. Há alguns meses me deparei com um relato da experiência de uma mulher – cacheada – que se sentiu maravilhada ao ser bem tratada e tocada com cuidado em um salão de beleza e tudo o que essa experiência significou. Sobram muitos dedos nas mãos quando conto quantas vezes pude ter essa experiência. Merece a reflexão.
Inúmeras vezes desejamos ter fios lisos ou menos crespos para não ter que lidar com os nossos. A praticidade vendida e midiatizada de cabelos lisos, ondulados, cacheados (mas não crespos!) entorpece e vira objeto de desejo. Nós nos acostumamos a perder a paciência enquanto penteamos e nós mesmas chegamos a nos machucar. Realizamos procedimentos que machucam, ferem e aceitamos a dor como como consequência natural da ‘beleza’. Quem nunca sonhou em ter cabelos ao vento como as cenas de filme de protagonistas brancas?
Quanto de verdade tem na ideia de que pentear nossos fios é um procedimento doloroso? Quanto de verdade tem na ideia de que penteados, em teoria protetores, devem machucar? Qual a consequência disso tudo? Quanto de alopécia, queimaduras químicas e outras afecções desenvolvemos por não pensar e refletir sobre isso tudo? E mais: sabemos mesmo cuidar dos nossos cabelos? Da nossa pele? Ou só aceitamos práticas já estabelecidas sem questionar? Quanto de autonomia de cuidado, saberes tradicionais e ancestrais perdemos?
Como alguém que trabalha e estuda saúde e cuidado, posso dizer: dor não é sinônimo de beleza. Pode, SIM, ser sinônimo de ferida (Real! Palpável! Além da psicológica). É violento normalizar dor demasiada em busca de uma estética – mesmo aquela que “traduz” empoderamento. Que estética ideal é essa que reflete machucar? Que reflete dor? Merecemos mais. Nossos crespos merecem carinhos e cuidados. Estética também merece ser vinculada à ideia de saúde.
Crescemos aprendendo que tudo em nosso corpo é feio, sujo, indigno de valorização e por consequência, afeto. A emancipação do nosso eu passa também por entender que somos pessoas dignas de cuidado que pode sim ser traduzido em toques cuidadosos. Pra quem vive uma vida de distanciamento físico e emocional, simples toques como apertos de mão ou um toque cuidadoso num salão de beleza nos faz entender que somos merecedores da vida que queremos ter.
Em tempo: falar do nosso cabelo é delicado. Envolve autoimagem, autoestima, emancipação. Também precisamos lembrar da importância que profissionais; trancistas e esteticistas pretas têm e de forma alguma esse texto tenta desmerecer o trabalho dos nossos. Precisamos estar atentas para não criarmos, na tentativa de fugir de padrões brancos, novos padrões que impliquem em mais dor e sofrimento.
Foto de capa: Ezekixl Akinnewu/Pexels.
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Rayssa Okoro (Ada Okoro – nome igbo) é médica formada pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), co-fundadora do Coletivo Negrex de estudantes e profissionais negres da medicina. Maranhense e nordestocêntrica. Filha de Raimunda, brasileira, e Samuel, nigeriano, igbo. Vive em constante processo de aprender a cuidar do nosso povo. Estuda questões relacionadas à saúde e subjetividades, principalmente o que se relaciona à saúde da população negra. Tem uma paixão especial pela intersecção desses temas com saúde mental e uso de álcool e drogas. Existe e resiste politicamente, exalta a beleza da subjetividade enquanto mulher preta, acredita que afeto pro povo preto é revolucionário e fala disso o tempo todo. Admira o movimento do corpo humano, alimentação e espiritualidade. É aprendiz de pole dancer e yogi nas horas vagas.