Quando eu era pequena só queria ser gigante
E agora que gigante sou só quero caber em algum lugar
Banzo – Nina Oliveira
Mirtes Renata de Souza, mãe do pequeno Miguel e empregada doméstica, continuou indo trabalhar em meio à uma pandemia global, pois não teve direito à quarentena, realidade de muitas empregadas domésticas brasileiras que sem afastamento remunerado, vêm arriscando suas vidas e a dos seus para sustentar a casa e não deixar a família de barriga vazia. Mirtes Souza estava no trabalho quando teve que descer para levar o cachorro da patroa para fazer suas necessidades fisiológicas . Isso aconteceu enquanto a “empregadora” estava fazendo as unhas.
Mirtes pediu para que a patroa cuidasse de seu filho enquanto exercia a tal ordem. Nesse meio, Mirtes desceu com o cachorro, seu filho chorou com saudade da mãe. Quase como um banzo que nós pessoas pretas sentimos diariamente. É comum nesse país mulheres pretas cuidarem dos filhos das brancas e deixarem os seus aos cuidados de outras pessoas, às vezes sob a responsabilidade de avós ou suas crias mais velhas e até mesmo vizinhas. O choro de Miguel diz muito sobre isso.
Segundo o intelectual Clóvis Moura (2004) o banzo era um “estado de depressão psicológica que se apossava do africano logo após o seu desembarque no Brasil.” Citando Renato Mendonça, Moura diz que para esse autor o termo se origina do quimbundo mbanza, “significa aldeia e, por extensão, terra natal, ou seja, significaria, em última instância, saudade da aldeia, de África”. O país Brazil foi fundado, constituído, erguido através do trabalho escravizado de africanas e africanos sequestrados de sua terra, sua casa. Dos braços de suas mães. Isso é o banzo. A eterna saudade daquilo a que pertencemos.
Milhares de mulheres pretas amamentaram e amamentam até hoje os filhos das brancas, de formas concretas e simbólicas. E por questões de minutos uma mulher branca não é capaz de olhar o filho da mulher que trabalha há anos em sua casa, que teve na mesma moradia sua própria mãe como empregada doméstica. E que cuidou de seus filhos. Como escreveu e canta Bia Ferreira: “E nós? As muié preta nós só serve pra vocês mamar na teta. Ama de leite dos brancos. Sua vó não hesitou, quando mandou a minha lá pro tronco”. É curioso que na denúncia a Sarí Corte Real, feita pelo Ministério Público de Pernambuco, a acusação da ré seja de abandono de incapaz. O estado brasileiro, que nos deve muito, foi e é omisso, se alimentou e enriqueceu muitos engenhos com sangue, suor e leite misturados das mulheres negras e nos abandonou desde a “abolição inconclusa” (PRETA-RARA, 2019).
Importante ressaltar, como a intelectual Preta Rara (2019) nos diz, emprego doméstico no Brasil é hereditário e não podemos aceitar que este seja o único destino possível para mulheres negras. Tem gente que herda rede de televisão, terras, empresas, grandes editoras, etc. A maioria das mulheres pretas herda o emprego doméstico, até os dias de hoje com poucos benefícios ou direitos. O emprego doméstico não é demérito, Laudelina de Campos Melo (1904-1991) é uma das mulheres negras brasileiras que mais entoou essa altivez ao ofício, além de nossas mães, tias, primas, avós, cujo emprego doméstico possibilitou que muitas de nós rompêssemos com esse destino único, atuando em outras ocupações profissionais.
A tristeza, o banzo coletivo que se abate sobre nós pessoas negras ao saber de mais uma notícia que nos desumaniza tem sido constante e dolorosamente contínua. Não tem trégua para a população negra e isso nos faz pensar também no nosso direito ao tempo de sentir dor, de viver o pesar dos assassinatos, abandonos e violências contra nosso povo.
Pessoas pretas em diáspora: semelhanças na desumanização de nossas vidas pelo olhar colonial
Já nos Estados Unidos, no caso da mulher branca norte-americana que vai passear com seu cachorro, um homem chama sua atenção para que ela ande com o cachorro na coleira, como diz a regra do local. Esse episódio de racismo cotidiano (KILOMBA, 2019) ocorreu no Central Park, em Nova Iorque. Ao ser questionada pelo rapaz a mulher em tom agressivo demonstra que está ligando para a polícia e com humor bastante alterado diz: “tem um afro-americano me ameaçando… a mim e ao meu cachorro”. Um trecho da matéria disponibilizada pelo G1, ressalta: “As imagens provocaram indignação nas mídias sociais e muitos usuários chamaram a mulher de “Karen”, termo popularmente usado para descrever uma mulher branca que se considera mais privilegiada do que os outros”.
Gostaríamos de abrir um parêntese aqui para destacar que, nos Estado Unidos, situações absurdas de pessoas brancas chamando a polícia para pessoas negras, que em muitas situações sequer se aproximaram delas, são muito comuns de acontecerem. Trevor Noah, no seu programa estilo talk show, já abordou sobre as várias situações em que pessoas brancas chamaram a polícia em denúncias que enquadram principalmente homens negros como ameaças . Um dos casos citados é mais absurdo ainda, uma mulher branca chama a polícia para denunciar uma criança negra por, pasmem, agressão sexual.
Retomando, observe: nos dois casos em que há um animal e uma pessoa negra, o cachorro é colocado como mais valorizado. O animal é rapidamente humanizado em detrimento da vida humana de uma criança de 5 anos, e no outro caso, de um homem preto que sofre ameaça de uma suposta abordagem policial, por parte da denunciante branca com seu cachorro.
A morte de Miguel Otávio Santana da Silva foi “paga” com 20 mil reais e a ré está em liberdade, vivendo num apartamento de luxo, com 247 m2, enquanto prepara sua defesa depois da acusação do MPPE (Ministério Público de Pernambuco). Já Mirtes não terá o filho presente e continuará residindo no bairro do Barro, uma localidade periférica de Recife, intranquila e na esperança – angustiante e histórica das mães negras deste país – por justiça pela sua criança.
Quando se fala que vidas negras importam é necessário dizer que nós negras e negros precisamos, antes de tudo, sermos vistos como pessoas. Fomos desumanizados para sermos escravizados e mesmo depois da falsa libertação continuamos tendo que nos afirmar enquanto gente! Esse é o legado que a escravidão nos deixou. Desconstruir o racismo é obra para todo mundo. Até porque o racismo é um problema do branco, por ele criado e não nosso. Como um cachorro pode valer mais do que uma vida humana? Racionais MC’s continua atual: “Minha vida não tem tanto valor quanto o seu celular, seu computador” (RACIONAIS MC’s, 2018, p. 85). Ou a vida de um animal, seja lá qual for.
O que aproxima essas situações violentas de racismo em contextos diferentes como o brasileiro e o estadunidense? Uma de nossas reflexões é o olhar colonial, o menosprezo das pessoas brancas pelas vidas negras, o desdém do valor de uma pessoa negra, desde a sua infância até a vida adulta. Esse olhar colonizador ainda estampa caras brancas e se materializa no descaso da patroa branca com a criança negra “filha alheia” e no perfilamento imediato de um homem negro como uma pessoa potencialmente perigosa.
Nos causa horror, indignação, banzo e confusão mental a forma nefasta como insistem em vilipendiar nossas vidas. Vão sobrando poucos espaços pra gente dar vazão aos sentimentos de indignação causados pelas notícias pesadas e acentuadas nesses tempos pandêmicos, isso quando elas chegam, quando não são sufocadas e passam como mais um caso invisibilizado e banalizado do genocídio do povo preto. Porém, ainda é preciso desaguar, escoar, com as ferramentas que nós possuímos, com a memória, a escrita, a fala e a expressão corporal que (re)criamos para nos mantermos vivos e sãos. Como nos ensina a escrevivência de Conceição Evaristo, “Apesar das acontecências do banzo há de nos restar a crença na precisão de viver e a sapiente leitura das entre-falhas da linha-vida ”.
Referências
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
MOURA, Clóvis. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2004.
PRETA-RARA. Eu, empregada doméstica: a senzala moderna é o quartinho da empregada. Belo Horizonte: Letramento, 2019.
RACIONAIS MC’s. Sobrevivendo no inferno. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
*O texto é uma colaboração das pretas Jéssica Silva de Sousa e Lorrayne Santos da Silva [Mulherista Africana], Mestrandas da primeira turma de Ações Afirmativas do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Foto de capa: Gustavo Costa (fotógrafo, documentarista, comunicador, estudante de Geografia e morador da Sabiaguaba).
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