Ceará Escrita Negra

Entre loas e lares

Quando me questionaram se eu poderia escrever sobre “minha vivência em maracatu enquanto mulher negra”, me pus a perguntar se tinha interesse em, de fato, deixar tão evidente todos os sentidos vividos durante o primeiro contato com o grupo Maracatu Solar, vinculado à SOLAR (Associação Cultural Solidariedade e Arte). Fora do meu lugar de nascimento – enquanto mulher paraense – e em contato com pessoas que nunca havia visto em vida terrena até então, senti algo que me carecia durante anos: estar/sentir-se em casa.

Entrei em contato com o Maracatu aqui no Ceará três meses após me mudar para Fortaleza, em outubro de 2018, coincidindo com o início das atividades de construção do carnaval de 2019, em janeiro. Tudo era muito novo. A cidade, as pessoas, as atividades culturais… E apesar de o maracatu enquanto expressão cultural estar presente no Ceará há anos (desde o século XIX*, para ser mais específica), não o conhecia. Assim, não houve tempo sequer de um contato gradual, pensando a dinâmica “ver na avenida/gostar/integrar”: logo comecei a frequentar os ensaios do Maracatu Solar, pelo convite afetuoso de um amigo da época. 

Esse convite iniciou um movimento interno sobre pensar minha ancestralidade, ainda num contexto pouco explorado de reafirmação da minha cor. Por crescer em um ambiente embranquecido, sempre tive muita dificuldade de me afirmar enquanto mulher negra apesar de hoje, ao revisitar fotografias de minha infância, ter a sensação de “como duvidei da minha cor durante tanto tempo?”, discussões essas que rendem outros momentos, sobre autoestima e reafirmação. 

O que me faz trilhar todo esse caminho na narrativa é pensar o maracatu como percepção de si, a partir da visualização do todo diante de ritmos e elementos marcados por gerações anteriores (ok, a sentença ficou grande, né?! Vou explicar). Os elementos presentes na imagem que o Maracatu passa no carnaval me eram muito familiares, mesmo nunca tendo tocado uma alfaia sequer na minha vida, visto uma calunga por fotografia ou ouvido uma loa (canto) na internet. Familiaridade afetiva essa, que faltou dentro da famigerada “instituição familiar” que me coube, até então sem a compreensão das carências que nós, pessoas negras, herdamos por termos sido separados de nossas famílias tão violentamente durante décadas.

Durante os ensaios, perdi as contas de quantas vezes chorei freneticamente tocando ritmos como Solene e Ijexá, presentes na composição musical do Maracatu que participo. Pude me desfazer de algumas certezas que, até então, eram enraizadas como a da necessidade de constituir uma família para me sentir em um lar novamente. E esse “abrir-se para o novo” teve um quê de transformação em como percebo o mundo hoje, me inspirando a construir um projeto artístico chamado Maracatu em Ponto, onde bordo em equipe sobre imagens do Maracatu Solar (segura esse merchan).

Apesar das críticas construídas sobre alguns locais de representatividade das nossas cores no carnaval fortalezense, reconheço que esse espaço só pode ser construído pelo contato íntimo vivido ao batucar conjuntamente, durante dois anos consecutivos. Hoje consigo compreender na prática o que o Prof. Hilário coloca como “zeladores” dessa instituição que é o maracatu tradicional*. O convite que recebi há dois anos me coloca hoje no lugar de convidante, me dando certeza de como sou vista no mundo pela minha cor e com as responsabilidades que me foram colocadas, apercebidas posteriormente a visita de mim mesma.

*Referências presentes em: SOBRINHO, José Hilário F. Cultura Popular e Culturas Afrodescendentes. In: HOLANDA, Cristina R. Negros no ceará: história, memória e etnicidade. Fortaleza: Museu do Ceará/ Secult/ Imopec, 2009.p. 65-89.

**O texto colaborativo é uma autoria de Hailla Krulicoski (PA). Paraense, estudante de Ciências Sociais (UECE), apaixonada por música percussiva e expressões artísticas, com ênfase no bordado e artesanato. Atualmente, integra a Orquestra Solar de Tambores (Maracatu Solar – SOLAR) e o Grupo Percussivo Acadêmicos da Casa Caiada (UFC), além de atuar em projetos culturais de diferentes linguagens.

Foto de capa: Renata Froan.

LEIA TAMBÉM: O negrume do maracatu cearense: um grito visual de negritude

Compartilhe: