Em 1979, Octavia Butler (1947-2006) lançou nos Estados Unidos, seu maior sucesso na literatura. Intitulado Kindred – Laços de Sangue, o livro de 432 páginas marcou a vida da autora, que, após sua morte, em 2006, entrou para o Hall da Fama da Ficção Científica, em Seattle (EUA) e ficou conhecida como a “grande dama da ficção científica”. Em vida, recebeu diversos prêmios, entre eles o Prêmio Hugo, um dos mais importantes do gênero, além do Prêmio Nebula, do Prêmio Locus e do Prêmio Science Fiction Chronicle.
Octavia Butler decidiu se tornar escritora aos 12 anos de idade, após se decepcionar com o roteiro de um filme de ficção científica, e foi consagrada por inserir questões de preconceito e racismo em suas obras, sempre colocando as personagens femininas negras em posição de poder.
Enredo
Assim acontece com a personagem Dana, protagonista de Kindred. Dana é uma mulher negra na década de 70, escritora, e está de mudança para um novo apartamento ao lado do seu marido, Kevin, também escritor. Ele, um homem branco, já conseguiu lançar seu primeiro livro e, com o dinheiro, conseguiram alugar um apartamento para viverem juntos.
Em meio à mudança, na arrumação de pilhas de livros, Dana sente um mal-estar e acaba sendo transportada para um outro local, uma floresta na beira de um rio. Ela acredita que está sonhando ou que, talvez, tenha desmaiado e está delirando, pois não reconhece onde está. Ao voltar o olhar para o rio, percebe uma criança se afogando, e seu primeiro instinto é nadar para salvá-lo. Após salvar o garoto Rufus Weylin, ela está na mira de uma espingarda antiga, sem entender o porquê. Mas de repente, ela está de volta ao seu lar, totalmente molhada, mas ao lado de Kevin.
Dana não sabe explicar o que houve, tampouco onde esteve. Kevin sinaliza que ela ficou longe apenas alguns segundos, enquanto para ela pareceu um tempo muito maior. A experiência para Dana não foi agradável, especialmente por não conseguir explicar o que acontecia, mas ela tinha a certeza que aconteceria novamente. E aconteceu.
A cada retorno, Dana descobria mais sobre o local e o período para o qual estava sendo transportada, e as motivações de suas viagens no tempo. Cada vez que compreendia, se preparava mais, levando consigo equipamentos e armas para sua proteção. Ela descobre que está sendo transportada para o século XIX, durante o período pré-Guerra Civil (EUA de 1861-1865), onde a escravidão de negros era a mão de obra nas fazendas e residências. Rufus Weylin, o garoto a quem salvou do afogamento, é seu ancestral e está sempre se colocando em situações de perigo.
Em sua segunda viagem, Dana encontra Rufus e faz a primeira real conexão entre eles, compreendendo que precisa proteger a vida do garoto, ainda sem conhecer os motivos. Sempre que retorna, a ligação entre eles aumenta, e ela tenta também salvar sua alma. Como garoto branco, herdeiro de uma das maiores fazendas de Maryland (EUA), Rufus é criado para exercer o papel de escravocrata e, mesmo enquanto criança, Dana percebe sua personalidade explosiva e muitas vezes maldosa. A personalidade cruel dele vai se intensificando conforme ele cresce e se torna o senhor da fazenda.
Para garantir a existência, Dana precisa proteger a integridade física de Rufus e mantê-lo a salvo, certificando-se que a tataravó, Hagar Weylin, possa nascer, em 1831. Mas responsabilizar-se pela vida de um homem branco e escravocrata para uma mulher negra, mesmo havendo uma conexão e amizade entre eles, não é uma tarefa fácil. Dana precisa também proteger-se dos perigos causados por outros brancos e pelo próprio Rufus, conhecendo todas as dores, humilhação e sofrimentos que o período obrigou aos negros escravizados.
Em uma das viagens, por acidente, Dana acaba levando Kevin e é possível ao leitor compreender as diferentes visões sobre o período da escravidão entre eles. Enquanto Kevin, homem branco, enxerga o momento como uma oportunidade para acompanharem a construção dos Estados Unidos, para Dana, mulher negra, é um período de reflexão, tanto pelo que estava vivendo, quanto pelo que seus ancestrais e amigos viveram.
Kindred é uma ficção científica, mas aborda temas relevantes e reais, como o racismo e o preconceito, e a humilhação e sofrimento a que os negros foram submetidos. A autora não poupa nos descritivos sobre a violência dedicada aos negros escravizados, com estupros, privação do sono e alimentação, comercialização de crianças e separação de famílias, chicotadas e outros castigos. Mas a autora também não cria uma fantasia que colocaria Rufus numa posição de mocinho por sua relação de ancestralidade e amizade com Dana. Pelo contrário, Rufus é narrado como de fato eram os escravistas.
Acompanhar a jornada de Dana é, muitas vezes, angustiante, pois ficamos na torcida pra que ela consiga realizar sua missão e sair a salvo. Houve muito sofrimento nos momentos de violência gratuita que foram dedicados a ela e a outros personagens e na luta pela sobrevivência que separou pais e filhos escravizados. Ainda que seja um livro de ficção e que tenha os Estados Unidos como cenário, Kindred nos faz refletir sobre tudo a que nossos ancestrais foram submetidos.
Apesar de ter sido lançado em 1979 nos Estados Unidos, Kindred só chegou ao Brasil em 2017, mais de 10 anos após a morte da autora. Atualmente a obra está disponível na Amazon, Americanas, Submarino, Mercado Livre e Livraria Cultura.
Ficha técnica
Kindred – Laços de Sangue
Autora: Octavia Butler
Editora: Doubleday (EUA); Morro Branco (Brasil)
Ano: 1979
Gêneros: Romance, Ficção científica, Romance psicológico, Ficção científica feminista
Personagens: Edana Franklin, Kevin Franklin, Rufus Weylin, Tom Weylin, Alice Greenwood
Foto de capa: Seatle Post Intelligencer/AP.
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Formada em Jornalismo e com especialização em mídias digitais, a baiana tem dedicado sua carreira ao mercado audiovisual há oito anos, quando iniciou na área. Já atuou como produtora executiva em obras para a televisão e em diversas funções dentro da produção de uma obra. Apaixonada por filmes e séries, se considera uma viciada que assiste mais de seis obras por semana.