Médico, negro e estrangeiro. Ele sonha com a possibilidade de poder levar o Sistema Único de Saúde (SUS) para o seu país de origem. Além da ideia de estudar e produzir pesquisas sobre a saúde da população negra. Trabalhar com políticas públicas em saúde. Fleury Kwegir Johnson, 28, natural do Togo, um país do Continente Africano que fala francês, além de mais 55 línguas ao redor do território. Destas, Fleury fala francês, mina e ewe.
Atualmente, ele cursa residência em Clínica Médica pelo Hospital Pasteur, em Méier (RJ), e é graduado em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “As pessoas nunca acham que somos médicos. Pensam que somos qualquer coisa, menos médico”, revela. Como médico, doutor Fleury Johnson tem ainda como um de seus objetivos propor uma medicina com linguagem simples.
Fleury Johnson, como também prefere ser chamado, cedeu entrevista à reportagem do Negrê para a editoria Vozes. Ele conversou com a gente sobre ideais, dificuldades, sobre o que é ser negro e estrangeiro estudando Medicina no Brasil, sua relação com o SUS hoje, suas escolhas e sobre o seu sonho da implantação do sistema no lugar de onde veio. Confira:
Negrê – Você é do Togo, um país localizado no oeste da África e de língua francesa… quando e por quê decidiu vim morar e estudar Medicina no Brasil?
Dr. Fleury Kwegir Johnson – Cheguei no Brasil há nove anos em 2011 para fazer faculdade de Medicina. Sempre sonhei estudar fora, tinha começado a estudar medicina no meu país, indo pro segundo ano, mas não me sentia completo. Eu decidi tentar a prova para outros lugares, passei para outros países também, como Guiné, França (não consegui o visto pra França na época do presidente Sarkozy), Senegal e Brasil. Acabei escolhendo Guiné e pedindo conselho para um professor lá, ele me aconselhou a vir para cá [Brasil] porque é uma realidade mais próxima da dos países africanos.
N – Por quê estudar Medicina? Quais os seus principais ideais na área profissional que você escolhe enquanto negro e estrangeiro?
F.K.J. – Medicina sempre foi meu sonho, não saberia dizer porque eu escolhi, mas desde que eu tinha quatro anos que comecei a querer ser médico. Então, eu comecei a estudar e fazendo escolhas que direcionariam a alcançar meu sonho. No meu país, não basta só ir bem no vestibular, o histórico escolar também conta. Fui então fazendo um histórico escolar que me possibilitaria isso. Meu sonho é poder levar o SUS para meu país. Quero trabalhar com políticas públicas em saúde, levando uma saúde de qualidade para quem precisa. Também gostaria de continuar trabalhos e pesquisas sobre saúde da população negra.
N – Quais foram as maiores dificuldades durante esse caminho percorrido estudando Medicina no Rio de Janeiro?
F.K.J. – Vou dizer que a maior dificuldade foi a dificuldade financeira… porque pra me manter aqui foi muito difícil. Foi muito difícil mesmo. A gente não podia trabalhar, segundo o contrato do programa de convênio. Tinha que então se virar. Eles tinham prometido pra gente que íamos ganhar uma bolsa pra se sustentar aqui, sendo que quando chegamos aqui, ficamos sabendo que a bolsa era só quando a gente tivesse terminando o primeiro ano da faculdade. Então, depois de terminar o primeiro ano de faculdade, você com a sua nota concorre pra poder ter direito à bolsa. Eu consegui ganhar a bolsa, mas era R$ 600 reais. Com a bolsa, dava pelo menos pra pagar o aluguel e o resto, tinha que contar com meus pais. Nem sempre eles tinham como me ajudar porque a moeda do Togo era muito muito desvalorizada em comparação ao real. Nos anos anteriores, dava muito mais. Hoje, dá um pouco menos. Então, eu tinha que contar com eles e eles não tinham como poder me ajudar. Teve um momento que tiveram que vender as alianças deles pra poder mandar dinheiro pra eu me sustentar aqui. Então, foram períodos assim muito muito difíceis. Meus amigos que também moravam junto comigo, a gente se ajudava um ao outro… e comecei a dar aulas de francês também, mas não era muita coisa. Às vezes pra ir pra faculdade, não tinha nem dinheiro pra pagar a passagem. Uma coisa que me salvou muito foi o bilhete único universitário.
Também outra dificuldade foi o fato de ser um dos únicos negros da turma. Tinham poucos negros na faculdade. Era também o fato de não encontrar pessoas iguais a mim. Então, com poucos eu conseguia dividir o que eu realmente estava passando. E também o preconceito pelo fato de vim da África, pelo fato de vim do Togo. Então, tem um certo preconceito com o negro que veio do continente africano.
N – Quais as razões que te levaram a decidir trabalhar no SUS?
F.K.J. – Vou dizer que foi uma inspiração desde a faculdade porque a gente já tinha muito contato. Basicamente, a gente vive no SUS e vê como que faz diferença. Via como que o SUS faz diferença na vida das pessoas que não têm dinheiro para pagar uma consulta, um médico, um tratamento. O SUS consegue dar isso para as pessoas. E também percebi que, comparado ao meu país, que se você não tiver dinheiro, você não tem como ter acesso à saúde. Então, isso foi me inspirando a querer trabalhar no SUS e sempre querer uma melhora em tudo o que tiver fazendo dentro do SUS mesmo tendo as possibilidades muitas vezes restritas…
Também pelo fato de… a maioria das pessoas que eu atendo no SUS são pessoas negras, então isso também foi algo que me chamou muito pro SUS pra poder fazer a diferença na vida da nossa população negra em particular. As dificuldades posso dizer que depende do momento. Tem momentos que é bastante puxado e cansativo. E tem momentos que a gente vê o desfecho, vê o paciente em outro lugar e ele se lembra de você. Ele te agradece pelo o que você fez por ele. Acho que é o maior retorno que existe trabalhando com a saúde, trabalhando com Medicina é você poder fazer diferença na vida das pessoas!
N – Qual a dificuldade maior dentro do SUS?
F.K.J. – É a falta de estrutura para você, às vezes, fazer um diagnóstico adequado e seguir um tratamento adequado. Mas a gente tenta contornar como podemos, dentro de todas as falhas que existem.
N – O que é ser médico negro e estrangeiro dentro do SUS? Como tem sido essa experiência pra você? E como ela vem acrescentando na sua carreira?
F.K.J. – Então, ser um médico negro e estrangeiro no SUS… é poder trabalhar com a nossa população, é poder trabalhar com a população negra, poder fazer diferença na vida de pessoas negras. O que me deixa bastante feliz são pessoas que se inspiram em mim, em outros colegas negros também porque muitos nunca viram médicos negros, né… e também outra coisa que me deixa bastante feliz é quando a pessoa abre a porta do consultório e fica feliz. Caramba, você percebe que a pessoa fica feliz, puxa assunto e conversa sobre ancestralidade, sobre um avô que veio escravizado do continente africano. A pessoa traz uma certa memória, uma certa memória afetiva pelo fato de encontrar um médico negro no consultório. Minha experiência, na maioria das vezes, foi bastante feliz. Mas, infelizmente, não é só isso, né… às vezes, é frustrante também quando a gente não consegue fazer o que a gente quer, o melhor pro paciente no momento em que precisa pela falta de estrutura. A experiência trabalhando é entender também como que é a estrutura de um Sistema Único de Saúde que é gratuito e tem que ser pra todo mundo.
Foto de capa: Arquivo pessoal.
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Jornalista profissional (nº 4270/CE), preocupada com questões raciais, e graduada pela Universidade de Fortaleza (Unifor). É Gestora de mídia e pessoas; Fundadora, Diretora Executiva (CEO) e Editora-chefe do Negrê, o primeiro portal de mídia negra nordestina do Brasil. É autora do livro-reportagem “Mutuê: relatos e vivências de racismo em Fortaleza” (2021). Em 2021, foi Coordenadora de Jornalismo da TV Unifor. Em 2022, foi indicada ao 16º Troféu Mulher Imprensa na categoria “Jornalista revelação – início de carreira”. Em 2023, foi indicada ao 17º Troféu Mulher Imprensa na categoria “Região Nordeste” e finalista no Prêmio + Admirados Jornalistas Negros e Negras da Imprensa Brasileira. Soma experiências internacionais na África do Sul, Angola, Argentina e Estados Unidos.