Manhãs de Setembro (2021) é a nova série brasileira do Amazon Prime Video com cinco episódios de 30 minutos que marca a estreia de Liniker, 25, como atriz. A cantora, que despontou no cenário nacional em 2015 com uma voz marcante e inconfundível, assume o papel de Cassandra, uma travesti que começa a ver as coisas dando certo em sua vida até a chegada de um filho de 10 anos que ela nunca soube da existência.
Assistir Manhãs de Setembro é envolvente do início ao fim. Conhecer a trajetória de Cassandra é também compreender a dureza da vida de uma travesti no Brasil, o país que mais mata e impede que pessoas trans cheguem à terceira idade. O país que menos emprega pessoas trans. Nesse contexto, vemos a personagem ser bombardeada a todo momento com comentários preconceituosos em sua trajetória, tal qual milhares de pessoas LGBTQIA + passam todos os dias na vida real.
Mas, para além do preconceito e complexidade, Manhãs de Setembro mostra a vida de uma pessoa real que, como qualquer mulher, se sente surpreendida com um filho. Mostra a vida real de uma travesti que tem nos amigos uma rede de apoio. Neste caso, a participação de Clodd Dias que é mulher trans, militante feminista, no papel de Roberta, é a irmã que Cassandra precisa.
Cassandra saiu do interior de São Paulo para a capital, decidida a tornar-se uma mulher forte e independente e “vencer na vida”. Aos 30 anos, ela trabalha como motogirl, canta no bar Metamorphoses, está feliz com seu namorado Ivaldo (Thomaz Aquino) e acaba de realizar o sonho de finalmente morar sozinha ao alugar uma kitnet. Com a chegada de Leide (Karine Teles), um caso do passado, sua vida dá uma reviravolta: um filho que nunca imaginou surge em sua vida, buscando não apenas um lugar para morar, mas o amor de um pai que Cassandra nunca foi e nem quer ser.
A realidade e a busca pelo sonho de ser cantora fizeram de Cassandra uma mulher forte e que não abre concessões que a desviem deste caminho. É uma independência que pode muitas vezes ser vista como egoísmo, mas quantas pessoas pararam pra pensar no bem-estar de Cassandra senão ela mesma a vida inteira? Quantas mulheres não sentem que um filho pode tirar a independência e mudar toda a rotina de uma vida já construída?
Gersinho, o filho, é uma criança carente, mas tão cheia de amor, que faz você torcer pra Cassandra tirar a capa de forte e se derreter por ele. Vale dizer que a produção da série acertou muito na escolha do ator Gustavo Coelho, que além de ser uma cópia da Liniker, tem uma doçura e uma inocência que convencem.
Talvez por isso seja tão difícil torcer para Cassandra pensar apenas no futuro dela, como faz sua voz interior, que também é a voz de Vanusa (Elisa Lucinda). Cassandra é fã da cantora e adora fazer cover de suas canções, inclusive, Manhãs de Setembro, que dá título a série, é uma canção de Vanusa. A voz interior confronta os desejos e ações de Cassandra sempre que ela pensa ou faz algo que a coloca em posição de “fraqueza” diante da relação com Gersinho.
Sem maldade, mas impregnado dos preconceitos da criação dada por Leide, Gersinho insiste em chamar Cassandra de pai e há dois momentos na série que são muito importantes para essa desconstrução: a primeira é quando a própria Cassandra lhe pede respeito e diz que ele deve parar de chamá-la assim; a segunda, é quando a melhor amiga de Gersinho, Grazy (Isabela Odorñez), mais uma criança prodígio da série, diz a ele que “já está na hora de parar de chamar a Cassandra de pai” porque ela não é um homem. Não seriam esses confrontos também para o telespectador?
Cassandra toma a decisão de se distanciar do filho, mas seus amigos Décio (Paulo Miklos) e Ari (Gero Camilo) abrigam Gersinho e Leide, que antes moravam em um carro nas ruas de São Paulo. Nisso, temos também duas histórias complexas e totalmente reais, reflexos da sociedade em que vivemos: (1) mãe e filho moram na rua, reflexo da alta taxa de desemprego e falta de moradia no país. Leide não tem experiências de trabalho ou estudos e vive de bicos e pequenas trambicagens para manter Gersinho. Mesmo assim, mantém o menino na escola, onde ele tem uma melhor amiga que é filha de uma prostituta. As duas crianças compreendem a realidade de suas vidas e o trabalho de suas mães com certa maturidade espantosa. (2) Décio e Ari são um casal homoafetivo que está junto há mais de uma década e que carregam justamente a mensagem contra os homofóbicos que classificam pessoas LGBTQIA + como promíscuas, entre outras tantas ofensas. Também estão à margem da estatística de expectativa de vida da população gay.
Outro retrato da sociedade apresentado na série é a ideia do homem hétero casado, mas que tem como amante uma pessoa LGBTQIA +. O personagem de Thomaz Aquino representa este homem que vive duas vidas: para a sociedade se assume como hétero, tem mulher e filhos, enquanto vive um romance secreto com Cassandra. O ator é mais um acerto, pois vai muito bem no papel.
A série acerta na escolha de Alice Marcone como roteirista. Mulher trans, Alice tem um papel importante na linguagem utilizada no filme e nas nuances que só quem vive consegue contar com verdade. É o que chamamos de representatividade. A presença de Alice na série não é um diferencial, mas uma obrigação.
Manhãs de Setembro é, portanto, uma série cheia de nuances de desconstrução de padrões de preconceito enraizados na sociedade, mas também deixa ainda em aberto na primeira temporada se, afinal, Cassandra, assim como eu, se renderá aos encantos do pequeno Gersinho.
Confira o trailer:
Ficha técnica
Manhãs de Setembro
País de origem: Brasil
Ano: 2021
Duração: 5 episódios de 30 minutos
Ideia original: Miguel de Almeida
Direção: Luis Pinheiro, Dainara Toffoli
Roteiro: Josefina Trotta, Alice Marcone, Marcelo Montenegro
Elenco: Liniker de Barros, Thomas Aquino, Karine Teles, Paulo Miklos, Gero Camilo, Clodd Dias, Isabela Ordoñez, Gustavo Coelho, Linn da Quebrada
Disponível em: Amazon Prime Video
Foto de capa: Divulgação/Amazon Prime Video.
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Formada em Jornalismo e com especialização em mídias digitais, a baiana tem dedicado sua carreira ao mercado audiovisual há oito anos, quando iniciou na área. Já atuou como produtora executiva em obras para a televisão e em diversas funções dentro da produção de uma obra. Apaixonada por filmes e séries, se considera uma viciada que assiste mais de seis obras por semana.