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Mercúrio subindo

Quando ainda criança, no ano de 1985, lembro-me de ver meu pai descendo as escadas do prédio onde morávamos, na Ilha do Governador (RJ), indo em direção ao show que marcou as nossas vidas. Ele estava vivendo o auge de seus 35 anos, com toda a energia que alguém dessa idade geralmente exala. 

Algumas horas após a nossa despedida, ele, ao lado de Freddie Mercury (1946-1991), viveriam a noite mais memorável do Rock in Rio. Para quem nasceu neste século, o Rock in Rio I foi o maior Festival do Hemisfério Sul no século XX. O evento foi realizado em janeiro daquele ano e durou por intensos dez dias. O empresário Roberto Marinho (1904-2003) conseguiu um feito histórico, levando ao Brasil a nata da música mundial daquela época. Bandas e músicos, como Iron Maiden, James Taylor, Nina Hagen, George Benson, Ozzy Osborne, Al Jarreau, Scorpion, B-52 e, claro, a todo-poderosa banda inglesa Queen.

A Rede Globo, que também era patrocinadora do evento, promoveu o festival à exaustão por seis meses a fio. Mesmo eu, aos nove anos de idade, estava ansioso para assistir aos shows pela TV. O momento foi tão marcante que mesmo depois de décadas, ouvir as gravações daquela noite, agora no YouTube, me dá arrepios. 

Para mim, o momento mágico é quando Freddie Mercury, bigode escuro, musculoso, sem camiseta, com uma calça branca e brilhante, está ao centro do palco andando de um lado para o outro. Ele encara a multidão com um ar desafiador e, segurando o microfone, olha para Brian que, com sua guitarra e seus inconfundíveis cachos loiros, abaixa a cabeça e começa a dedilhar. Brian está todo vestido de branco, confortavelmente sentado em um banquinho como se estivesse em um luau entre amigos.

Foto: Reprodução.

Ambos estão suados, seus corpos britânicos não estão acostumados com as noites quentes num país de clima tropical como o Brasil. Existe uma tensão no ar. O resto do palco está preto como breu e milhares de olhos os observam a cada movimento. Depois de um longo e inesquecível solo de guitarra, Freddie começa a cantar “Love of my life…”. A multidão explode ensandecida. O barulho é ensurdecedor. Aposto que a energia desprendida poderia abastecer uma cidade. Você pode sentí-la mesmo anos depois, apenas assistindo ao vídeo.

Por um instante, Freddie Mercury se torna redundante. Esse é o toque de gênio. Ele então se junta à multidão e, como um Maestro, guia o público em uníssono. Para mim, esse é um momento de pura sinergia entre a banda e a audiência, que talvez nunca tenha sido repetido com tanta perfeição em toda a história da música mundial.

Assistindo à gravação eu sei que, naquele exato momento, meu pai está vivo e está bem. Naquele momento, eu sou o filho sonhando em um dia também ser adulto para poder estar em shows como aquele. Naquele momento. eu me apaixonei por música ao vivo. Amor que mantenho até hoje.

No filme Bohemian Rhapsody (2018), que reconta e história da Banda Queen, a apresentação no Rock in Rio é citada. Freddie diz que “não tinha certeza de que eles [a multidão] entendiam o que ele cantava, até que ‘Love of My Life’ aconteceu”. Desse momento em diante ele diz que teve certeza de que todos o entendiam, pois cantaram toda a música com ele.

Meu pai sempre me contava essa história. Ele me dizia como aquele verão carioca, quente e úmido, foi mágico. Me falava como em uma noite de 1985 ele viu o Queen ao vivo. Ele me contou sobre a longa viagem de ônibus até o festival, que aconteceu perto da praia da Barra da Tijuca, cerca de 40 quilômetros da nossa casa no subúrbio carioca da Ilha do Governador. Contou sobre as filas enormes para conseguir ingressos. Sobre cambistas espertalhões tentando passar a perna nos desavisados. A longa espera para comprar bebidas, as enormes filas para usar o banheiro. 

Ao longo dos anos, ele também me falou sobre como o lugar estava lotado. Sua suspeita era de que os organizadores do festival tinham vendido mais ingressos do que deveriam. Ele lembrava do suor, das lágrimas e da incrível energia do lugar. Para muitos, essa “bagunça” os afastaria para sempre de querer ir a um concerto ao vivo. Para mim, funcionou como publicidade. Naquela época, meu pai insistia: “Estávamos lá por nosso absoluto amor à música, para nos conectarmos e para sermos livres”.

Naquele momento, eu ainda não sabia, mas eu já estava completamente ‘corrompido’ pelo Rock and Roll e pela música ao vivo. Seis anos depois, seguindo os passos de meu pai, eu estaria no Rock in Rio II, em 1991. Mas essa é outra história.

A versão ao vivo de Love of my Life executada naquele dia ainda toca nas rádios brasileiras com muita frequência. Durante muitos anos, essa lembrança era apenas uma forma de eu tirar onda. “Meu pai estava lá”, dizia eu para todos que conhecia. Ainda hoje, mais de três décadas depois, sinto orgulho por esse feito

A canção, no entanto, ganhou um significado totalmente novo quando meu pai faleceu, em 2017. A música deixou de ser uma forma de contar vantagem e se tornou uma forma espiritual de comunicação entre nós.  Hoje, essa música se tornou algo metafísico, como se eu pudesse realmente sentir a presença dele ao ouví-la.

Na semana em que meu pai morreu, eu me embebedei numa melancolia infinita. Lembro de apertar o play no YouTube e cantar até cansar os pulmões. Nesse momento, eu imaginei como deve ter sido para aquela plateia. Meu pai, Freddie Mercury e milhares de jovens cheios de vitalidade, desfrutando, cada um a sua maneira, daquela noite tropical em 1985. 

Para mim, meu pai e Freddie vivem juntos nessa gravação e, de tempos em tempos, eu sinto o conforto de poder visitá-los.

Se preferir, ouça o artigo:

Foto de capa: Reprodução.

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