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A Raposa e as Uvas

Minhas primeiras memórias do meu pai são de ele contando fábulas elaboradas e histórias mirabolantes. Hoje, sei que essa era a forma que ele encontrou de externalizar a sabedoria adquirida ao longo de toda sua vida como homem negro no Brasil. Para uma família negra classe média baixa como a nossa, especialmente durante as décadas de 80 e 90, ser uma criança inocente poderia ter custado caro. O que o meu pai já sabia naquela época e que eu sei hoje, ainda mais após o nascimento dos meus filhos, é que um ego ferido é melhor do que um corpo cheio de balas.

No Brasil, a inocência é um privilégio que não é concedido ao nosso povo. Lembro-me de um episódio de quando eu tinha apenas 13 anos. Aconteceu no supermercado Sendas, que ficava perto da minha casa na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Ao meu ver, o segurança já foi colocando a mão na cintura. Olhei em seus olhos e quase que instantaneamente sabia o que ele estava dizendo – mesmo sem ter dito uma palavra sequer. Eu sabia que, se fosse o caso, ele não hesitaria em atirar em mim. Ambos sabíamos que se ele o fizesse, provavelmente, ele escaparia impune. Esse é o contrato social que cabe a nós, negros, e que aprendemos bem cedo. Sei que para eles nossas vidas não importam. Naquele dia, sob o olhar sanguinário do capataz, larguei o que tinha nas mãos e lentamente saí do estabelecimento, torcendo para não receber um tiro pelas costas.

Nunca saberei o que é crescer em uma família branca e, para ser honesto, também não quero saber. No entanto, para este exercício intelectual, farei uma suposição que acredito ser razoável. Poder-se-ia dizer, baseado numa gama de livros, revistas e programas de TV sobre brancos no Brasil, que enquanto suas crianças assistiam Mickey Mouse, Show da Xuxa e liam histórias com princesas pálidas e adormecidas, meu pai me ensinava, por exemplo, sobre a Guerra das Malvinas (1982). 

Preparando-me para as nuances do mundo, ele explicava que tanto Margaret Thatcher era uma assassina como também eram culpados os Ditadores Militares Argentinos. A Guerra das Malvinas, na visão do meu pai, era uma elaborada tentativa de sobrevivência para a então decadente ditadura argentina. O plano acabou não funcionando para os militares fascistas argentinos, que eventualmente perderam – como se tivessem tido alguma chance – a guerra. Mais de 650 de seus compatriotas foram perdidos. O conflito, meu pai insistia, era ‘imprudente, politicamente motivado e facilmente evitável.’

Algumas das histórias que meu pai me contava estão agora profundamente enraizadas em meu subconsciente; outras foram simplesmente esquecidas. Entretanto, tenho certeza que essas histórias me guiam em todas as minhas tomadas de decisão hoje. Dentre as várias estórias, existe uma que eu nunca consegui esquecer e que, ao ouví-la pela primeira vez, me chocou profundamente: a fábula A Raposa e as Uvas.

Na versão contada pelo Sr. Andrade de Melo, a raposa elogia insistentemente as uvas. A raposa quer comê-las e as uvas sabem disso. Caso sejam abocanhadas, naturalmente, as Uvas morreriam. A raposa continua a insistir que nada de mal acontecerá. “Tudo que eu quero é admirá-las de perto, sentir suas cascas em minhas patas”, garante a raposa. Apesar de total conhecimento dos riscos, as uvas, talvez guiadas pela vaidade e pelo desejo de acreditar no seu charmoso algoz, decidem descer do vinhedo. Bang! A Raposa abocanha e engole as uvas. Fim.

Até hoje, sempre desconfio de elogios vindos de pessoas brancas. Existe uma maneira sutil e cruel de se fazer isso no Brasil que instantaneamente faz soar um alarme em meu sexto sentido. Durante a maior parte da minha vida, assim como as Uvas na fábula, eu ansiava por elogios, de brancos principalmente. Na minha concepção, ao ser elogiado por brancos, eu me sentia parte do clube dos “humanos”, que, por sua vez, significava pertencer a “algo melhor”. Para mim, significava sobrevivência. Eu ainda não sabia que minha humanidade não viria de fora para dentro. 

Cinicamente, brasileiros brancos geralmente me “elogiam” usando apelidos. Normalmente me comparando com negros famosos, como, por exemplo, Zé Pequeno, Pelé, Lewis Hamilton ou qualquer atleta negro que esteja em voga no momento. Hoje, por exemplo, sou chamado de Gerson Vapo Vapo, jogador do Flamengo na temporada de 2020. Mas lembro também, que já fui chamado de Nélio, jogador do Flamengo nos anos 90.

Recentemente, numa festa de aniversário de um dos meus filhos, um convidado, brasileiro e branco, previsivelmente me chamou de Gerson. Minha adrenalina subiu. Na tentativa de me controlar, dei as costas e fui receber outros convidados. No entanto, alguns minutos depois, outro brasileiro branco sem conexão alguma com o primeiro e certamente sem ter ouvido o que tinha ocorrido, repetiu a dose e disse algo como: “está bem-arrumado, parecendo o Gerson”. Nem originais eles conseguem ser, pensei. 

Ao utilizar esse tipo de pseudo elogio, eles roubam a nossa individualidade. Classificando todos os negros como uma única entidade. Para eles, não somos seres humanos com personalidade e desejos individuais. Somos vistos como um organismo único. É como se dissessem: “Não me importa quem você é, pera mim você é somente um negro”.

Esses “mal-entendidos” têm uma função social importante para os brancos: a de os proteger de sentir empatia pelo nosso povo. Desumanize um grupo e todos os seus elementos serão automaticamente desprovidos de humanidade. Hoje, sempre que ouço esse tipo de “elogio”, sinto uma dor profunda. Ao ouví-los, tenho meu momento “Corra”. E depois do ocorrido, não vejo outra escolha a não ser me distanciar da pessoa.

Uma das ferramentas da supremacia branca de manutenção de poder é a de nos manter agrupados. Controlar as narrativas sobre o que é dito sobre nós é uma arma poderosa contra a nossa existência. Historicamente, a remoção da individualidade foi usada como instrumento e facilitou extermínios, escravizações e, em última análise, abriu caminhos para genocídios de povos não brancos em todas as partes do planeta. Como disse o escritor britânico Gary Younge, a mensagem é clara: ‘os não brancos sempre serão vistos como intercambiáveis, não importa o quão talentosos ou proeminentes nos tornemos.’

Uma das maneiras de se combater ideologias de supremacia branca é entender essas ferramentas e encará-las de frente, seja desafiando narrativas racistas, aquilombando-se ou aprendendo sobre esses sistemas de dominação. Devemos fazer isso coletivamente e em todas as frentes possíveis.

Por agora, enquanto ainda não avançamos significativa e substancialmente como coletivo, você que é branco, não branco ou negro (infelizmente existem muitos negros que contribuem com as narrativas dos opressores) e quiser conversar comigo, saiba que meu nome é Guido Melo e eu existo em mim. Eu sou único, pareço e penso como eu próprio. E, mesmo que você tente me convencer com elogios retrógrados e racistas de que é seguro descer do meu galho, eu não o farei. Não pra você.

Guido Melo e seu pai, O Sr. Andrade de Melo, em junho de 2017, pouco antes do pai falecer. Foto: Arquivo Pessoal.

Foto de capa: Divulgação.

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