Não tem como eu falar de “paternidade negra” sem citar o digníssimo, vulgo Lucas Ivo, vulgo meu esposo. “Mas Rhaissa, paternidade é uma só, pai é pai independente da raça. Por quê você fala paternidade negra? Hoje é Dia dos Pais e todos devem ser exaltados sem fazer nenhum tipo de diferenciação, certo?” Errado, meus caros! E, infelizmente, eu falo isso com um pesar enorme no meu coração. Na teoria, digamos, que seria o paraíso se tal questionamento que muitos me fizeram quando eu tentei debater sobre o tema fosse verdade, mas na prática, longe disso.
É muito louco porque quando eu escrevi falando da maternidade negra, eu falei muito das dificuldades que a mãe terá que enfrentar em relação ao racismo. E em como será difícil ensinar o filho a ser forte e a lutar contra esse sistema insano. Mas ao falar da paternidade, vejo que literalmente, ter um pai, é o maior desafio e a falta dele é a maior dificuldade. Infelizmente, muitas vezes, paternidade negra significa não ter ninguém para chamar de pai.
Meu pai e meu avô são negros e sempre estiveram presentes na minha vida. Meus tios são negros e também são presentes na vida dos filhos, mas infelizmente, admito que minha família faz parte de uma exceção. Lembram que eu falei que iria citar meu esposo? Pois bem, deixem-me primeiro falar de como eu identifiquei a diferença gritante na paternidade preta, e branca; por exemplo.
Sempre estudei em escolas privadas (citei isso em um outro texto), mas nunca tive um colega de classe que não tivesse o pai presente. Como falei também no meu outro artigo, sempre fui a única preta da minha sala, ou no máximo, tive um colega da mesma cor. Passei seis meses na Suíça e lá conheci vários pais. O esposo da minha tia, o pai dele, o pai de alguns colegas, enfim. Lembro-me que simples “atitudes de pai” que eles tinham, me deixavam pasma! Ajudar a colocar o filho para dormir, fazer o jantar enquanto a esposa cuidava do filho, levar o filho a um passeio no final de semana enquanto a esposa ficava em casa tirando um tempo para si, fazia com que eu os enxergasse como os melhores pais do mundo. Mas gente, não é isso que um pai deve fazer?! Infelizmente, muitas vezes, a falta de referência nos transforma (mesmo sem querer) em mulheres machistas, mas isso pode ser pautado em outro texto.
Estou nos Estados Unidos e aqui, a coisa mais normal do mundo, é vir uma família completa. Pai, mãe e filhos. Todos juntos e felizes, almoçando, aproveitando o dia ensolarado, enfim. (Aquelas cenas dignas de filme americano ou comercial de margarina, sabe)? Porém, vivo em uma cidade abastada onde a maioria da população é americana e branca. Tenho visto que algo comum, como ter um pai, ou pelo menos o nome dele na certidão de nascimento. É comum, mas somente para a parte branca da população. Triste, né? Mas vamos falar um pouco da história do meu amado.
Meu esposo nasceu e foi criado em um bairro periférico bastante conhecido em Fortaleza. Em sua escola pública localizada no mesmo bairro, não tinha “Dia dos Pais” simplesmente pelo fato da maioria dos alunos não terem um. Meu esposo nunca teve um pai. Na realidade ele sabe quem foi seu genitor, mas ele nunca o fez uma visita, ou até mesmo, nunca o deu seu sobrenome. Muito embora morasse a três ruas de distância. Meu esposo tem duas irmãs por parte de mãe e embora elas sejam filhas de outro homem, também tiveram a mesma experiência.
Eu não sei se minha sogra teve um pai, na verdade, por questão ética, eu nunca a fiz essa pergunta. Todavia, eu sei que no documento dela só consta o nome da mãe. A sobrinha dele tem oito anos, e embora seja muito nova, já está enfrentando a mesma coisa que todos os seus parentes enfrentaram. Entretanto, diferente da mãe, tia e avó, ela teve o tio como referência masculina, então, desde muito nova, passou a chamá-lo de pai, muito embora ele seja o irmão de sua mãe. Dando a ele inclusive as lembrancinhas feitas na escola, em uma data como essa, por exemplo. Continuando esse ciclo, meu esposo gerenciava uma empresa de internet (no mesmo bairro que sempre morou) e a maior parte dos funcionários e clientes também enfrentavam a mesma situação de não terem nem o nome do genitor no documento. Mas por qual razão estou falando uma história tão pessoal?
Acontece que o Lucas usou sua história para escrever a da nossa filha complemente diferente. Não teria escolhido um pai melhor para a Sofia e falo isso completamente sem demagogia. Inclusive, para mim, me dói muito estar longe dele nesse momento em que ele está tendo não só o primeiro dia dos pais como pai, mas também como filho. Como mulher, posso dizer que me deixa triste essa quantidade absurda de abandono paterno. Não deve ser nada fácil criar um filho sozinha e o vê-lo crescer sem ter um pai.
Admito que quero usar esse texto para “chamar atenção” dos pais negros e implorá-los para não abandonarem seus filhos. Quero tentar fazer com os pais negros usem da sua triste realidade motivo para melhorar a realidade futura. Esse tema é muito delicado pois o abandono de certa forma acaba viralizando como culpa da mulher. Talvez ela “se agarrou” com o “cara” errado. Talvez ela deveria ter prestado mais atenção no comportamento dele. Ou talvez o próprio comportamento dela tenha justificado isso. Complicado! O pai abandona o filho e a “culpa” é da mulher! Eu sei que as estatísticas também são frutos das diferenças sociais impostas pelo racismo.
Todavia, não devemos usar essa triste realidade como razão para abandonar os nossos. Aliás, absolutamente NADA justifica esse fator. Então Feliz Dia dos Pais para aqueles que usam as suas histórias para mudarem as histórias futuras. Feliz Dia dos Pais para aqueles que mesmo com muita discriminação trabalham honestamente para criar seus filhos. Feliz Dia dos Pais para aqueles que, muitas vezes, precisam provar para a polícia que são “pais de família” simplesmente por terem um tom de pele mais escura e não irem presos. Feliz Dia dos Pais para as milhares, quiçá milhões de mães que fizeram papéis de pais. Feliz Dia dos Pais para aqueles que juntos com o Lucas mudam as estatísticas e provam diariamente como é lindo ser preto e ver que tem um pai. Feliz Dia dos Pais para aqueles que antes de qualquer coisa, aprendem diariamente, como ser exemplo de pai.
Foto de capa: Nappy/Pexels.
*Correspondente internacional do Negrê nos Estados Unidos.
Com o coração dividido entre Jornalismo e Turismo, sempre teve na escrita a terapia mais relaxante. Já morou em três países, visitou quatro, mas seus pés estiveram presentes em oito. Ama viajar e é altamente ligada a projetos sociais, tendo sido voluntária por quase um ano em uma creche comunitária. Recém mãe de primeira viagem, tem como objeto principal fazer a filha crescer em um mundo melhor para os negros. Atualmente, está fazendo um intercâmbio na Flórida (EUA), onde ficará por um ano e usará dessa experiência uma ótima oportunidade para mostrar que os pretos(as) podem viajar, trabalhar e usufruir do lado bom da vida.