São três identidades atuando dentro de uma pessoa só, eu posso dizer. A de ser mulher negra, nordestina e viajante – que gosta de viajar e decide colocar isso como uma das prioridades de vida. Primeiro, aos 18 anos, eu comecei a me ver enquanto mulher negra a partir de diversas discussões e trocas de ideias e experiências, quando cursava a graduação em Jornalismo lá em 2014. Era meu primeiro ano de faculdade quando decidi parar de alisar o cabelo – o que fazia desde a adolescência – para assumir o cabelo cacheado. O que influenciou diretamente nesse processo de reconhecimento e construção de identidade foi o grupo de pesquisa que ingressei para estudar questões raciais.
É impressionante quando você senta para conversar com outras mulheres pretas o quão você se reconhece pois as experiências vão de encontro uma a outra. As vivências vão sendo muito semelhantes e compatíveis. E você começa a achar e entender o seu lugar dentro dos contextos e das situações. Isso é maravilhoso porque acaba sendo libertador. Mas, às vezes, é dolorido também. Ou muitas vezes. Porque você acaba se dando conta de muitas dores no meio desse percurso. E você as compartilha dentro de um ciclo de mulheres negras. Pelo menos, em algum momento, você é compreendida.
Bom, o processo de ser e se entender enquanto mulher negra dentro do Brasil e, no meu contexto, dentro do estado do Ceará, é complexo. Precisaria de artigos e mais artigos para entender e se fazer entender. E quando se fala de Nordeste então, é mais complexo ainda. Sabendo que a região Nordeste do Brasil é a que mais tem estados reunidos. São nove estados e inúmeras cidades, fora as capitais. Então, há muito o que se falar, o que se entender, o que escrever sobre. Há complexidades. Há particularidades.
O que posso dizer e refletir hoje no Dia do Nordestino é que, praticamente, toda e qualquer interação com o mundo, seus elementos e suas pessoas, tem forte impacto sobre você. E te faz refletir. E ser crítica também. E esse olhar crítico vai se intensificando cada vez mais à medida que você sente suas três identidades atuando: mulheridade negra, nordestinidade e espírito de viajante. Nas interações dentro do meu estado, muito pude perceber e vivenciar situações de um machismo cearense e do racismo. Principalmente nas interações com homens cearenses – em diversos tipos de relações, não só as afetivas. Isso não restam dúvidas.
Ao sair do seu estado de origem pela primeira vez, como mulher nordestina, você sente o que é o peso da xenofobia. Longe de casa, você é discriminada por causa do lugar (Ceará) ou da região (Nordeste) que você nasceu. Você recebe chacota pelo seu sotaque, pelo seu modo de falar, pelas suas gírias. Logo algo que é tão natural de falar e fazer, gestos e mais gestos, você começa a se acanhar e ter receios de ser quem você é. De carregar sua identidade no “mei do mundo”. É bem louco pensar assim. Mas tendo esse sentimento às vezes, minha vontade de manter as minhas raízes só se torna cada vez mais maior.
Lembro de uma situação quando estive, pela primeira vez, na região Sul do Brasil em Porto Alegre (RS), caminhando em uma praça que tinha uma feira. Eu sempre costumo conversar e puxar muito assunto. Então, eu parei em algumas barracas para conversar com os feirantes. E quando disse que eu era da região do Nordeste, fui surpreendida com um: “Ah, da Paraíba, né?”. E eu fiquei besta e revoltada sobre como muita gente do Sul/Sudeste querem nos homogeneizar, como se fôssemos uma coisa. Eu senti uma raiva, viu? Primeiro, porque eu não tenho sotaque da Paraíba. Segundo, porque eu nunca pisei lá. Terceiro, porque o Nordeste tem nove estados!
Lembro também do meu pai me contando de que quando ele morava na região Sudeste do Brasil, no Rio de Janeiro (RJ) porque era marinheiro e decidiu desistir para voltar ao Ceará para iniciar a graduação em Direito. Ele ouvia que ia passar fome aqui. É realmente impressionante e inacreditável a péssima imagem que vendem e fazem do nosso pedaço de Brasil – tão rico em cultura e particularidades. E eu nem vou falar de política e outros assuntos que fazem o Nordeste sofrer tanta xenofobia.
Se reconhecer enquanto mulher negra, nordestina e viajante/mochileira é um desafio. Pois há que se lembrar a si mesma que, em meio as suas andanças por aí, você pode sofrer diversas discriminações ao mesmo tempo. Quando não é com a identidade racial pode ser com algum elemento da sua nordestinidade. Não conheço tantos lugares pelo mundo – como imensamente gostaria –, mas já percebi essas nuances em diversas situações. Apesar de nem tudo ser só sobre discriminação. Às vezes, é apenas por pura desinformação.
Mas há o que se celebrar. Há de se celebrar o Dia do Nordestino e ter orgulho de onde e quem se é – não importando o lugar do mundo em que você esteja. Já viajei para fora do Brasil duas vezes e, obviamente, conheci muitos brasileiros. A maioria, brancos e de outras regiões do Brasil – que não eram do Nordeste. Do meu cantinho, sempre só tinha eu ou uma outra pessoa de outro estado do Nordeste. Era sempre a minoria mesmo. Tanto no sotaque como nos costumes e na relação com a comida. Aliás, em tudo. Porque, afinal, é muito particular ser nordestino. É muito autêntico.
Como viajante, pouco encontrei mulheres com esse misto de três identidades: negra, nordestina e viajante. Mas espero encontrar nas próximas viagens, nos próximos destinos e dividir dores e delícias. Espero poder celebrar com elas o que é ser nordestina no “mei do mundo”, comendo um bom cuscuz ou uma deliciosa tapioca. Espero poder conversar sem ter que “traduzir” as minhas gírias cearenses ou nordestinas. Espero demais! E espero que cada vez mais mulheres negras e nordestinas se encorajem a “chinelar” pelo “mei do mundo”. E também incorporarem essa identidade de viajante/mochileira.
Foto de capa: Joshua Abner/Pexels.
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Jornalista profissional (nº 4270/CE) preocupada com questões raciais, graduada pela Universidade de Fortaleza (Unifor). É Gestora de mídia e pessoas; Fundadora, Diretora Executiva (CEO) e Editora-chefe do Negrê, o primeiro portal de mídia negra nordestina do Brasil. É autora do livro-reportagem “Mutuê: relatos e vivências de racismo em Fortaleza” (2021). Em 2021, foi Coordenadora de Jornalismo da TV Unifor. Em 2022, foi indicada ao 16º Troféu Mulher Imprensa na categoria “Jornalista revelação – início de carreira”. Em 2023, foi indicada ao 17º Troféu Mulher Imprensa na categoria “Região Nordeste” e finalista no Prêmio + Admirados Jornalistas Negros e Negras da Imprensa Brasileira em 2023 e 2024. Soma experiências internacionais na África do Sul, Angola, Argentina e Estados Unidos.