Um blecaute envolve um prédio em escuridão. Uma mulher, isolada em um elevador suspenso a 23 metros do chão, se vê aprisionada pela ausência de energia. Na penumbra, luzes e sombras se mesclam, desbloqueando memórias de seu passado e seus pais. Em sobreposição, as contradições da história da humanidade.
Recém chegado à Terra da Luz, o monólogo Três Luzes, apresentado pela atriz Cássia Damasceno e dirigido pelo cineasta Aristeu Araújo, começa com a história de uma mulher presa em um elevador devido a um blecaute que atinge toda a cidade. As histórias da família de ambos os autores surgem, com medos e sonhos presentes.
Em entrevista exclusiva ao Negrê, Cássia relata que o projeto nasceu durante a pandemia quando estavam confinados em meio à escuridão e incerteza do futuro. Sendo artistas e sem público algum, Cássia e Aristeu desenvolveram o espetáculo como uma forma de se manterem vivos, sem cogitar a possibilidade de apresentá-lo a um público. Seus devaneios os levaram a escrever o roteiro baseado em escuridões coletivas.
“Como a história da mãe dele [Aristeu] e a do meu pai têm a ver com o mundo, pensamos em multiplicar essas histórias. Então, ampliamos para que elas contemplassem todas as pessoas, porque todo mundo tem pai e mãe, ou é filho. Isso já contempla as pessoas de alguma forma, seja porque o pai é ausente, seja por outro motivo”, conta a atriz.
Introduzido na temática das escuridões coletivas, o monólogo explora as dificuldades da vida e como, às vezes, a sociedade falha em cuidar de nós. Atualizado a cada nova apresentação, o espetáculo inclui pesquisas sobre tragédias recentes, como as chuvas e os alagamentos em Porto Alegre (RS) e a guerra em Gaza, que ainda acontece. Além disso, reflete sobre a ancestralidade e origem humana, evidenciando como o ser humano é capaz de criar tanto coisas que beneficiam à humanidade quanto àquelas que a destroem.
“Desde o início, eu quis contar a história do meu pai, que é muito preciosa para mim. Meu pai não conseguiu voltar para casa depois de um evento traumático, e eu sempre quis explorar isso, essa realidade de muitas pessoas, principalmente pretas. Meu pai viveu uma vida de escravo, indo de fazenda em fazenda, sendo abusado, sem ter o que comer, dormindo embaixo de pontes. Como essas histórias não são registradas, sentimos a necessidade de contá-las, porque existem coisas ainda piores na humanidade. A peça mistura alguns aspectos pessoais e ficcionais, mas é baseada em nossas experiências”. É o que Cássia relata.
De sonhos à apagamentos
Ao partir do ethos de como a sociedade apaga as pessoas e seus sonhos – especialmente as pessoas negras, o monólogo traz à reflexão sobre necessidade de produção massiva para a sobrevivência e o impacto em nossos sonhos e nos sonhos de nossos pais. “Você já pensou nos sonhos dos seus pais?”. Era o que a atriz questionava durante sua encenação. O objetivo é fazer o público ponderar que, se hoje, nós sonhamos, é porque nossos pais se abdicaram do seus para nos criar.
A atriz relembra que: “Meu pai, por exemplo, tinha muitos filhos para alimentar, e essa era a vida dura dele. Era uma vida dura só para alimentar os filhos. Eles – pai e mãe – abriram a mão dos seus sonhos. Então, por isso, a gente joga para a plateia. Você já pensou nos sonhos dos seus pais? […] Eu nunca tinha pensado”.
De sonhos com energia elétrica, água e casa própria, os medos e as fobias sociais são explorados e pensados no intuito de causar identificação com o público. “Hoje, parece que temos mais medo do que antes. Temos muito medo de relacionamentos, de diversas coisas. […] E vamos trabalhar com elas, trazendo fobias mais atuais, fobias curiosas, para refletir sobre o medo que criamos, o medo que nos aprisiona. Porque não se trata apenas de uma pesquisa superficial; é algo profundo”. É o que a atriz Cássia fala.
Ao utilizar a metáfora de estar presa aos medos e às tragédias da vida humana, sejam elas passadas ou recentes, o monólogo explora a ideia de se tornar atemporal. A proposta é criar uma obra que ressoe em qualquer época e seja transmitida com sensibilidade, unindo histórias reais em torno da escuridão.
Saiba mais
Conheça mais: Instagram @3luzes.
Foto de capa: Lina Sumizono.
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Estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Ceará (UFC). Com uma paixão por contar histórias ignoradas pela mídia tradicional, dedica-se ao jornalismo de denúncia e celebração, principalmente ao jornalismo negro. Busco potencializar as vozes não ouvidas e trazer à tona narrativas raciais e sociais que importam: a celebração e resistência negra. Acredito no poder transformador da informação e no papel do jornalista como agente de mudança, comprometida com a justiça social e promoção da diversidade.