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Uma reflexão sobre racismo alimentar

Há um pouco mais de três anos decidi não mais me alimentar de carne animal. Nesse período eu estava começando a contestar a qualidade do alimento que chegava até mim e minha família. Muitas pessoas próximas ainda me questionam sobre eu estar tentando me adequar em um perfil que segundo elas, é impossível para uma pessoa preta e pobre, por se tratar de uma discussão que é centralizada por pessoas brancas e de classe média alta. Me questionam sobre quem tem o direito de ser vegetariana/vegana no Brasil. Essa é uma questão importante, mas que deve ser estendida para as seguintes indagações: por quê pessoas pretas e periféricas não podem ter o direito de decidirem o que comer e de questionarem como o alimento chega até elas?   

“Que seu remédio seja seu alimento e seu alimento seja seu remédio”.
ImHotep.

De fato, houve um embranquecimento nas discussões acerca de alimentação saudável e o não consumo de carne animal. Porém, é fundamental evidenciar que trazer a alimentação como sinônimo de saúde e potência de vida nunca foi pioneiramente uma pauta hegemônica branca. No Antigo Egito, o polímata ImHotep já compreendia o alimento saudável como fonte de vida e energia. Também era médico e entendia que a alimentação não poderia estar dissociada da medicina.

No final do século XX e início do século XXI, temos Dr. Sebi, herbalista e curandeiro que por meio do conhecimento ancestral afrikano, trabalhou a alimentação como cura de diversas doenças. Denunciava a indústria alimentícia e farmacêutica por exercerem papel de extermínio das populações pretas com alimentos industrializados que adoecem e consequentemente, com remédios farmacêuticos que não efetivam a cura. Falar sobre alimentação saudável, antes mesmo de se tratar de uma questão branca elitizada ou denominada como vegetarianismo ou veganismo, é uma característica ancestralmente afrikana.

Às vezes eu acho que todo preto como eu
Só quer um terreno no mato, só seu
Sem luxo, descalço, nadar num riacho
Sem fome, pegando as frutas no cacho
Racionais MC’s.

A alimentação tanto pode curar quanto pode adoecer. As populações com alto grau de vulnerabilidade social acabam sendo o grupo alvo da ausência de uma alimentação saudável e do direito de escolha pelo que se coloca à mesa. O racismo alimentar está tanto relacionado à fome, quanto nos alimentos envenenados ou sem qualidade que são consumidos pelas populações negras e periféricas. É racismo a partir do momento que existe um sistema alimentar como esse que afeta diretamente as populações não brancas. Quem são as pessoas que hoje podem decidir o que comer de forma saudável?  

O consumo regular de frutas e hortaliças é 33% menor na população negra brasileira em relação à branca, conforme dados da pesquisa Vigitel 2018: População Negra. Enquanto 39% dos brancos consomem esses alimentos ao menos cinco dias na semana, o percentual cai para 29% na população negra. São dados que, inclusive, foram retirados do ar pelo Ministério da Saúde, no primeiro semestre de 2020. Ação que podemos entender como uma forma de não tornarem nítidas informações públicas que também são denúncias.

63% dos lares chefiados por mulheres negras está abaixo da linha da pobreza, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2018. É com essa realidade que a raça, socialmente falando, determina condições de desigualdades que impedem inclusive o direito de repensarmos nossa própria alimentação por falta de estabilidade financeira. Assim, é perceptível observar que consequentemente há uma desestrutura na garantia de uma alimentação de qualidade para as populações negras. Não seria esse mais um projeto de extermínio?  

Importante nos atentarmos como os mecanismos do racismo estrutural agem nas sociedades. E quando falamos de sistema alimentar, não seria diferente. Você pode ser afetado pela fome, pela insuficiência nutricional ou fisgado pela boca com os alimentos que são acessíveis, porém com altos riscos à saúde. Por meio de todos os caminhos possíveis, o racismo alimentar busca efetivar o nutricídio, termo cunhado pelo Dr. Llaila O. Afrika para definir o extermínio nutricional das pessoas negras.

Hoje, me aproximando aos poucos das discussões sobre saúde holística afrikana, que pode ser entendida como a busca ancestral por uma vida mais saudável e natural, me entendendo como uma mulher preta em diáspora, reforço a importância de contestar o alimento que encontro nos mercados, assim como o alimento mais saudável que me é privado devido o alto custo. Pois há tentativas de adoecimento das pessoas negras, periféricas e do campo que estão acontecendo no prato.

A partir do momento que compreendemos a atuação do racismo alimentar, vemos que o problema não é individual e sim coletivo. O que reflete na falta de garantia do direito à terra das populações do campo, indígenas e quilombolas; no enfraquecimento de políticas que possibilitam maior atuação de pequenos agricultores e agricultura familiar; na dependência econômica que mantemos das grandes indústrias alimentícias; nos altos índices de consumo por agrotóxicos no país; na linha de pobreza que atinge as pessoas pretas e periféricas. É importante não se deixar esquecer que em sociedades colonizadas, a alimentação posta pelas grandes indústrias também é colonial.  

Foto de capa: Nappy/Pexels.

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