“Foi então que uns brancos muito legais convidaram a gente pra uma festa deles, dizendo que era pra gente também. Negócio de livro sobre a gente. A gente foi muito bem recebido e tratado com toda consideração. Chamaram até pra sentar na mesa onde eles estavam sentados, fazendo discurso bonito, dizendo que a gente era oprimido, discriminado, explorado. (…)
Eles tavam tão ocupados, ensinando um monte de coisa pro crioléu da plateia, que nem repararam que se apertasse um pouco até que dava pra abrir um espaçozinho e todo mundo sentar junto na mesa. Mas a festa foi eles que fizeram, e a gente não podia bagunçar com essa de chega pra cá, chega pra lá. A gente tinha que ser educado (…)”.
Este trecho do texto “Comé que a gente fica?” da filósofa e antropóloga Lélia Gonzalez (1935-1994), expressa bem como o negro é marginalizado na sociedade. Ainda quando se trata de suas próprias lutas.
Reflete o porquê Vinícius Jr., que é um dos melhores jogadores de futebol atualmente, e pode-se dizer que realmente é o melhor, não ter ganho a famosa Bola de Ouro. Um prêmio, criado pela revista France Football, que é muito estimado para o futebol.
Trajetória
Vini Jr. tem apenas 24 anos. E com essa idade, jogando pelo Real Madrid, um dos times mais tradicionais da Espanha, já fez história. Ganhou título mundial, da Champions League, do Campeonato Espanhol, sendo protagonista. Um jogador que era chamado de “Neguebinha” (apelido pejorativo) pela imprensa brasileira e torcedores rivais, quando ainda atuava pelo Flamengo, mostrou que saiu da Gávea e conquistou o mundo.
Porém, os títulos, o bom futebol, não valem de nada quando se é um jovem preto que desafia toda uma estrutura racista. Ele, que começou a sofrer o racismo dos espanhois, não baixou a cabeça e exigiu que os organizadores dos campeonatos fizessem algo sobre o que estava acontecendo.
Desde 2021, a escalada racista contra Vinícius Jr. foi apenas crescendo. A ponto do jogador falar em uma entrevista coletiva, estar se sentindo cada vez mais triste pela situação vivida.
“Estou aqui há muito tempo assistindo a isso e me sinto cada vez mais triste. Tenho cada vez menos vontade de jogar. A cada reclamação feita, me sinto pior, mas tenho que aparecer aqui e mostrar minha cara”, disse ele. “Pedi ajuda à UEFA, à FIFA, à CONMEBOL, à CBF. Eles podem lutar contra isso”.
Esta fala do garoto do Ninho (como é chamado os meninos formados na base do Flamengo, assim como ele) foi dita antes do amistoso, realizado em março deste ano de 2024, entre as seleções do Brasil e da Espanha por uma tal “conscientização do racismo”.
No entanto, de lá para cá, nada mudou. Vinícius Jr. continua sofrendo racismo. Continua atuando contra a discriminação racial e vivenciando retaliações por essa luta.
A Bola de Ouro, que ele era merecedor por uma brilhante temporada de 2023/2024, foi entregue ao Rodri, meia-campista do Manchester City, na segunda-feira, dia 28 de outubro.
É necessário ressaltar que este mesmo atleta, ao ganhar a Eurocopa este ano com a Espanha, em disputa com a Inglaterra, proferiu cânticos considerados ofensivos. Na ocasião, a Union of European Football Associations – União das Associações Europeias de Futebol (UEFA) puniu ele e seu companheiro Morata.
A instituição informou que os jogadores foram penalizados por violarem “os princípios gerais de conduta, as regras básicas de conduta decente, por utilizarem eventos desportivos para manifestações de natureza não desportiva e por desacreditarem o futebol e a UEFA em particular”.
Mas é preciso contextualizar o que levou a UEFA a punir os dois jogadores.
Rodri havia cantado junto com Morata “Gibraltar é espanhol”, fazendo com que a federação de Gibraltar apresentasse uma queixa formal à entidade.
A Espanha disputa com os britânicos a soberania sobre aquele território, que abriga cerca de 30 mil pessoas. Gibraltar está localizado em terras espanholas, mas está sob domínio da Grã-Bretanha há 300 anos. Exatamente por isto os cânticos foram considerados desrespeitosos e ofensivos.
Em seu discurso, ao ganhar a Bola de Ouro, o meia disse: “muitos amigos me escreveram que o futebol ganhou”. Esse trecho foi considerado por muitos uma ofensa ao Vinícius Jr. Isso porque para justificar o desdém pelo jovem brasileiro, jornalistas e torcedores espanhois falam que Vini precisa focar no futebol e não em lutar contra o racismo. Intencional ou não, ao destacar essa frase, Rodri deu a entender que seu perfil seria aquele ideal de um jogador: branco e europeu.
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A luta perseguida
Não é a primeira vez nem será a última que um atleta de um esporte de alto rendimento sofre retaliações por combater o racismo.
É válido lembrar de Colin Kaepernick, jogador de futebol americano dos Estados Unidos, que por conta de uma sequência de assassinatos de pessoas negras no país, maioria por abuso de policiais, ajoelhou-se durante o hino nacional e se recusou a cantá-lo. O fato aconteceu em um jogo de pré-temporada no ano de 2016. Na ocasião, ele também usou meias que tinham imagens de policiais caracterizados como porcos.
O então quarterback do San Francisco 49ers disse na época: “não vou me levantar e mostrar orgulho pela bandeira de um país que oprime o povo negro e as pessoas de cor”.
A reação da National Football League – Liga Nacional de Futebol Americano (NFL) minou Kaepernick e lhe fechou as portas do esporte. Tanto que ele teve o contrato rescindido com sua antiga equipe e nunca mais se recolocou na NFL.
Naquele mesmo ano, um esportista em ascensão, quis se posicionar em favor de Kaepernick, mas foi reprimido. Este atleta era Lewis Hamilton, grande nome da Fórmula 1, que pouco depois se tornaria um dos maiores da modalidade. Sendo o único negro na competição e fazendo barulho para que a organização da F-1 possa fazer algo em relação ao racismo que assola esse esporte tão elitista.
Na ocasião, em uma de suas corridas, para demonstrar apoio, Hamilton usou um capacete vermelho (cor do time de Kaepernick) com o número que o jogador utilizava. Ele chegou a afirmar que foi silenciado naquele momento. “Me disseram para não continuar, para não apoiá-lo, senão eu iria me arrepender”, revelou.
É válido registrar como, por receio de perdas de contratos e retaliações, como aconteceu com Kaepernick, muitos outros atletas se silenciam diante de situações como a de Vinícius Jr. Por conta disso, ele se torna ainda mais gigante.
Boicote
Entre os finalistas da Bola de Ouro estavam sete jogadores do Real Madrid, entre eles Vini Jr. A expectativa era de que por conta de sua brilhante temporada entre 2023/2024, o atleta brasileiro seria o vencedor. Alguns jornais já o colocavam como campeão da estimada premiação.
No entanto, aparentemente foi vazado que o Rodri levaria o título e isto causou revolta nos merengues (alcunha dada ao clube por conta da cor branca de sua camisa). A direção do time decidiu por não levar nenhum representante, surpreendendo a organização da Bola de Ouro. Neste dia, tanto o Real Madrid foi considerado o melhor time, como seu técnico, Carlo Ancelotti, foi escolhido o melhor treinador do mundo.
O clube soltou uma declaração à imprensa dizendo que “se os critérios de premiação não designam Vinícius como vencedor, esses mesmos critérios deveriam designar Carvajal como vencedor. Como não foi o caso, é óbvio que a Bola de Ouro da UEFA não respeita o Real Madrid”.
É certo, que diante de todo acontecimento, a direção do time espanhol se colocou ao lado de um dos seus principais jogadores.
Luta antirracista
Vinícius Jr., ao se posicionar firmemente contra o racismo em solo europeu, colocou-se como muitos jogadores não têm coragem de se dispor. É difícil ter uma carreira em ascensão ou querer conquistar seu espaço e ainda se posicionar. E para ele, enquanto um jovem preto de apenas 24 anos, torna-se ainda mais desafiador.
Em entrevista à CNN, o atacante merengue declarou que “se a situação do racismo na Espanha não mudar antes de 2030, a Copa do Mundo terá que ser em outro lugar”. Essa forte aspas não foi muito bem recebida já que Espanha, Marrocos e Portugal sediarão a Copa do Mundo Masculina de 2030. Argentina, Paraguai e Uruguai terão alguns jogos da fase de grupos na edição.
Após o anúncio que Rodri foi o vencedor da Bola de Ouro, Vini falou em uma rede social: “eu farei 10x se for preciso. Eles não estão preparados”.
Vinícius Jr. é um jovem preto, de São Gonçalo, Rio de Janeiro, que saiu da base do Flamengo para o profissional do clube com apenas 16 anos. Fez muitos rubro-negros o amarem jogando com o manto sagrado. Em 2017, quando completou 18 anos, mudou-se para Espanha para fazer história no Real Madrid. E hoje é considerado ídolo de muitos.
Em 2019, Vini afirmou que um dos seus sonhos era que, um dia, pudesse fazer todos os brasileiros torcerem por ele. E podemos dizer que conseguiu. Não importa se veio ou não a Bola de Ouro.
Como disse o título de Lélia Gonzalez, iniciado neste texto, se faz a pergunta “Comé que a gente fica?”. A gente fica na luta. A gente fica na resistência. Vinícius Jr. escolheu ser vencedor.
*Artigo publicado originalmente na Agência Tambor
Foto de capa: Divulgação.
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