Em um de seus diversos contos, Obaluayé estava observando uma festa dos Orixás no terreiro. Por sua aparência ser considerada assustadora pelos outros, ele espreitava do lado de fora constrangido. Ogum se aproxima dele e o cobre com uma roupa de palha para que ele possa entrar na festa sem gerar o incômodo que o impedia
Durante a festividade, Iansã, que viu tudo, esperou Obaluayé chegar ao centro do terreiro. Enquanto ele festejava, Iansã invocou o vento que levantou as palhas que o cobriam. O vento encantado transformava as feridas hediondas em pipocas que voavam pelo lugar. E assim, a beleza de Obaluayé se mostrou em um homem jovem, belo e encantador. Desde então, a amizade dos dois se tornou forte e eles se tornaram reis do mundo dos espíritos.
Neste conto resumido, percebo sempre a dicotomia entre vida e morte. De um lado, o constrangimento de Obaluayé se mostrando em nossas chagas: a dor de carregar as mais diferentes feridas, o constrangimento de não ser aceito por tê-las e o medo de mostrá-las e não ser aceito… E criando essa necessidade de cobrir-se todo… E, assim, deixando parte de sua identidade de lado. Não reclamo da solução de Ogum, ela serviu naquela situação. Porém, o sopro de Iansã se faz necessário para curar o constrangimento de ser.
Feridas
A pessoa negra carrega durante sua vida todas as feridas que ficam à flor da pele! Feridas que convidam à vivência de um lugar de sofrimento, dor, angústia e marginalidade, que nos abrem caminhos para raivas infinitas de tamanha injustiça. A sociedade, que não quer essas feridas, muito menos as raivas desse povo, entrega para cada um uma máscara.
Uma máscara que nos faz acreditar em tantas mentiras bobas como igualdade racial, não-existência de um racismo (estrutural), que nossa cultura e identidade não foram apagadas e/ou que a cor da pele não faz diferença. Por incrível que pareça, essas máscaras cobrem essas feridas de forma tão convincente que, apesar de sentirmos as dores, temos a sensação de estarmos confortáveis e aceitos em locais que criam mais feridas.
Plenitude
Obaluayé não podia se libertar de suas vestes sozinho, ele se sentia confortável com elas para que ele pudesse estar ali. Agora, Iansã… Ela não! Ela queria ver Obaluayé por inteiro e mostrar sua plenitude a todos que estavam ali! Dessa forma, ela não colocou nele uma máscara que cobrisse o constrangimento; ela deu a ele a cura! Ao expurgar dele as doenças e suas mazelas, mudando todo o ambiente com pipocas e exibindo sua beleza para ser contemplada. Como uma pessoa em funcionamento ótimo, Obaluayé agora pode ser quem se é sem julgamentos. Ao abraçar a si, ele pode não apenas lidar com as mazelas daqueles que o buscam, mas também ser conforto daqueles que precisam. Isso ao tomar posse do seu reinado sobre as enfermidades e saúde.
As transformações de Obaluayé transcendem as dicotomias da vida: morte e vida, doença e cura, dor e satisfação. Seu exemplo mostra a habilidade de se elevar para além das dores que vivemos, permitindo, por meio da vulnerabilidade, esperança e coragem, a possibilidade de vivermos de forma autêntica e experenciar uma vida mais plena.
Foto de capa: Boluwatife Oguns/Unsplash.
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Psicólogo (CRP: 11/11607) e Palestrante. Um criolo cearense buscando ascensão social em massa para o povo preto. Graduado em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Especialista em Psicologia Positiva. É Fundador e CEO do projeto “Por Mais Simples que Seja”. Gosto de pensar sobre a vida e conversar com pessoas sobre perspectivas de ascensão e crescimento pessoal.